Segunda parte do artigo de Elisa Moreira Salles sobre sua viagem à China em 1966. A reportagem deu origem ao filme No Intenso Agora, de seu filho João Moreira Salles, a quem agradecemos a autorização para publicar.
O texto foi reproduzido aqui em sua forma original, sem revisões ortográficas. As imagens são do filme da viagem.
Leia a primeira parte aqui.
Uma brasileira na China (II)
Texto de ELIZINHA MOREIRA SALLES (Especial para O CRUZEIRO)
Hangchou tinha magníficos jardins, mas Suchou era a cidade dos jardins. Ali, os ricos e os nobres possuíam casas de verão. Enlanguescer, O Jardim do Modesto Funcionário, O Jardim das Vagas Cantarolantes, O Jardim da Inveja, O Jardim do Tigre Enfurecido e A Floresta dos Leões.
No Jardim WangChe, o calçamento, de pedaços de telhas e pequenas pedras, dispostas em formas geométricas ou curiosas, representa cisnes e dragões.
Nos pavilhões, as janelas serviam de quadros. Sôbre mesas Ming, muxarabis exóticos de madeira e papel arroz deixam entrever pedras esculturais ou árvores anãs. Tudo que se vê, através dessas janelas, é calculado para o gôzo do olhar: árvores diminutas que nos mostram, à altura da vista, apenas as suas copas extraordinárias; colunas de madeira laqueada, esculpidas, não no capitel, mas na base, para que se possa apreciar bem a qualidade do entalhe. As grandes árvores são usadas, apenas, quando seus caules, carcomidos pelo tempo, nos possam sugerir uma escultura de valor.
As flôres
Ingredientes que compõem a beleza de um jardim chinês: o uso da água, sempre presente, como lagos artificiais, galerias com janelas de formas inesperadas, imitando vasos de porcelana, crisântemos, rosas, peras, maçãs, enfim, tôdas as flôres e frutas do mundo; as pontes, feitas de tábuas ou lascas de pedras cortadas e dispostas como num parquet em ziguezague; as florestas de bambu, nunca plantados em touceiras, mas separadamente, como as árvores no Bois de Boulogne.
Os chineses harmonizam seus jardins com plantas, arbustos e árvores. As flôres são usadas para efeitos imprevistos. Jamais plantadas em canteiros, são cultivadas em vasos que, trocados cada dia, apresentam uma aparência garrida e viçosa. Êsses vasos são utilizados da maneira a mais surpreendente, pois o senso de dramaticidade do chinês não se cansa de suscitar emoções. Assim, numa curva do caminho, num recôncavo, a lógica cedendo sempre ao absurdo, surgem elas com a fôrça da mais intensa fantasia. Ao choque do encontro inesperado, sucede a inefável emoção da forma inusitada. Pois, nesse jardim, o poder da vontade e a sujeição da matéria são, a cada passo, demonstrados. São jardins feitos para a glorificação do espírito. Assim, as flôres, plantadas em seus recipientes, assumem as formas que o capricho do artista jardineiro determinou: elas se inclinam delicadas ou se alteiam formando grandes buquês, como se já colhidas. As hastes são configuradas pela fôrça de uma vontade milenar. Os chineses amarram as hastes em pedaços flexíveis de bambu e os inclinam como cascatas ou véus de noiva. Margaridas, narcisos, crisântemos têm, na China, formas nunca anteriormente vistas.
Para se penetrar nesses recintos de sonho, usam-se portões de diferentes alturas. Para o mandarim, os portões eram inteiramente abertos; para os de condição social menos elevada, só se abria uma parte de cima e uma ginástica forçada os fazia pular êsse pequeno obstáculo; para o povo, era a escalada, geralmente de cêrca de dois metros de altura.
Em Lieou (O Jardim para se Enlanguescer), o segundo andar de todos os pavilhões é feito de encaixes de madrepérola na madeira, que cintilam à luz do sol. Num de seus extraordinários quiosques, a arquitetura em leque se exibe no telhado e no mobiliário, que copiam esta forma inesperada.
Os quiosques têm nesse cenário maravilhoso a importância dos pagodes na paisagem chinesa – com suas mesas de formas insólitas, talhadas no mármore, e seus bancos de porcelana em côres variadas.
À noite, voltamos a WangChe, para ver a lua. Nos seus pátios imensos, nos separamos, e cada qual demandou um pavilhão isolado, dos inúmeros que se sucedem em planos ascendentes e descendentes. Fomos prêsas, então, de efeito fantasmagórico; de qualquer lado que olhássemos através dos orifícios talhados nas pedras, vislumbrávamos a lua. Ninguém queria quebrar o encanto. Foi quase penosa a volta ao convívio e à integração.
A viagem de Suchou a Nanquim – um pesadelo! Como tudo de melhor na China é reservado aos estrangeiros, até êste momento todos os trens e ônibus tinham sido confortáveis. Mas, dada a desorganização criada pela GV, que, viajando incessantemente pelo país, bloqueia trinta por cento dos meios de transporte, tivemos de usar um vagão comum. De novo, a divisão de classes, com primeira, segunda e terceira – gente amontoada como gado, lembrando o trem da fuga de Dr. Jivago.
Em Nanquim, assistimos a um filme sôbre a guerra sino-japonêsa. A mesma técnica terrível de guerrilhas, descoberta antes de Cristo pelos primeiros imperadores dos Reinos Combatentes, e utilizada até hoje no Vietname. Chocou-nos a falta de diplomacia na escolha do espetáculo, pois grande parte da assistência era constituída de japonêses. Comprando, vendendo, negociando, o inimigo tradicional é hoje o grande bem-vindo: tem tratamento especial como turista e poder de contrôle sôbre o mercado.
Almoçamos numa comunidade agrícola, cujos métodos medievais nos horrorizaram: doze ou catorze mulheres, amarradas por cordas, puxam o arado! No grande canal, meninas colhem, ao longo do dia, castanhas-d’água, submersas até a cintura em águas pantanosas.
Uma família de camponeses ganha em média de trezentos e cinqüenta yens por ano (US$ 175,00). Para economizar o tempo de trabalho a comida lhes é levada ao campo, ao custo de 6 yens mensais por pessoa. As cozinhas públicas recentemente construídas não possuem água corrente. O nosso almôço, porém, foi delicioso, com cerca de vinte e cinco pratos. De volta à cidade, visitamos uma aléia funerária, sempre interessante de se ver, mas não se podendo comparar, de longe, com os monumentos do Vale dos Reis. O grande prazer foi o encontro de três leões soberbos que, perdidos num arrozal, ao cair da tarde, nos faziam pensar nas grandes esculturas helênicas.
Como, indiscretamente, continuássemos a perguntar por que nos era vedada a entrada nos templos e museus, fomos convidados a uma tomada de contato com a GV – extremamente preocupados com as notícias de vandalismo publicadas nos jornais do Ocidente. Separados em grupos de quatro europeus para cada quatro chineses fazíamos perguntas sem jamais obtermos resposta satisfatória. No meu grupo, chefiado por um estudante de medicina, havia um intérprete, uma operária de fábrica de aviões e um ferroviário. Explicavam-nos, apenas, que para pertencer à GV era necessário ser filho de mártir da revolução, de membro do Partido ou, preferivelmente, de camponês muito pobre. Aliás, a pobreza na China é usada como o título de nobreza no nosso mundo. Honraria sem igual que, se não compra confôrto, dá imenso prestígio.
O estudante de medicina, preocupado com as explicações insuficientes do intérprete, passou, em bom inglês, a dizer que a GV não havia destruído obras de arte, a não ser as de que a burguesia se utiliza para inquietar os espíritos e escravizar o povo. Perguntei-lhe se a Rocha dos Mil Budas deveria ser suprimida. Irritando-se, disse-me que apenas os budas que não tivessem valor artístico seriam destruídos; mas foi incapaz de determinar quem decidiria da qualidade de cada objeto.
Onde não cantam os pássaros
Em Xengchéu as coisas começaram a se complicar: condições sanitárias nos hotéis cada vez mais insuportáveis, guias difíceis, ambiente, a cada momento, mais pesado.
Visitamos, ao cair da tarde, o Rio Amarelo. Lamacento de paisagem monótona, não nos impressionou. Lá, vimos as únicas aves de tôda a nossa viagem: patos selvagens, que se banham à beira do rio. Todos os pássaros foram mortos de maneira curiosa: visando proteger as colheitas, grupos foram organizados que, ao longo do dia e da noite, por todo o país, faziam um barulho ensurdecedor com matracas, até que os pássaros, mortos de cansaço e de fome, caíssem exangues. Aliás, durante um mês de estada, só vimos dois cachorros e um gato.
A preocupação com o enriquecimento da terra é constante. O que o Partido deu, inegàvelmente, ao chinês, além do orgulho nacional, o abandono do ópio e o sistema de abastecimento extraordinário, é o reflorestamento. Os sistemas de irrigação são centenários, mas milhões de árvores são plantadas e cuidadas como nos jardins de Versalhes.
No único jardim de infância dessa cidade, organizado para crianças de três a sete anos de idade dá-se lhes instrução, alimento, cuidados médicos e uma cama para dormir. Os pais providenciam colchão, vestuário e roupa de cama, pagando por isso 13 e meio yens por mês – preço exorbitante para os camponeses, razão pela qual a maioria das crianças com quem estivemos pertencia à classe dos funcionários (a nova burguesia local). Nessa escola, os alunos aprendem música, desenho, danças, as obras de Mao e os fundamentos das guerrilhas.
É alarmante verem-se crianças de três anos, com ódio na voz, cantando os sofrimentos do negro americano e jurando a vitória no Vietname. No recreio, enquanto a professôra cronometra a rapidez de cada aluno, êstes, passando por túneis subterrâneos, escalando escorregadores, matam com gritos de fanatismo desenfreado as efígies de soldados americanos e do Presidente Johnson. À criança que, sempre vestida de uniforme de camuflagem, aprende com maior facilidade a atravessar pontes, lançar granadas e atingir o inimigo, é dada, semanalmente, uma medalha. Aos seis anos, iniciam o aprendizado de Mao, e em reuniões diárias discutem o imperialismo, o capitalismo e a escravidão. Compreende-se, enfim, o porquê da excepcional maturidade da criança chinesa: abandonando as bonecas e os carrinhos, transformam-se em autômatos treinados para matar.
Dia a dia, os sentimentos naturais de afeto e dependência familiar são abafados: o tradicional culto aos antepassados é tabu e, como diz a canção: “O Amor dos Pais não Vale o Amor de Mao”.
Loyang
Long-men, santuário budista cavado no rochedo, confirmou-nos a decepção que é a escultura chinesa.
Lá, descobrimos que o ódio ao americano, inimigo tradicional, está sendo superado pela revolta contra os russos, o amigo irresponsável. Numa fábrica de tratores, abandonada em meio à sua organização pelos técnicos russos, foi-nos explicada, longamente, a injustiça dessa atitude. As fábricas chinesas, mesmo as recentemente construídas, são semi-automáticas.
Em Pequim, aonde chegamos com o vento das estepes e um frio abaixo de zero, o nosso estado de revolta contra as condições do hotel levou-nos ao desespêro. Contra o frio, que, pelas janelas mal encaixadas, varria os nossos quartos, os empregados só puderam nos oferecer esparadrapo, para tentar obstruir a passagem do vento. Lutando contra a sujeira dos travesseiros, passamos a encapa-los com suéteres e dormimos com casacões.
Os ociosos 200 milhões
Em Tienamen, a grande praça que leva à Cidade Imperial, e na qual se fazem todas as grandes paradas, fomos cercados por multidões de guardas vermelhos, alguns dos quais, vindos de zonas afastadas, jamais tinham tocado um branco. A impressão foi de angústia, e devo o fato de não ter sido pisoteada a um amigo que, forçando passagem, tirou-me de lá.
Da população de setecentos milhões, penso, há quinhentos que trabalham, incessantemente, e duzentos milhões que passeiam. As multidões aterradoras da Índia desaparecem, diante do incessante vaivém chinês.
Aos milhares de crianças que, vindas do Tibé e da Mongólia, estavam preparadas para o frio reinante, se juntavam outras que chegadas do sul, com suas roupinhas de algodão e pés descalços, nos comoviam. Essas crianças que, pelo fato de pertencerem à GV, tinham passe livre em todos os trens, precipitavam-se para conhecer a capital. Acomodações não tinham sido previstas e paliçadas foram construídas, em tôdas as ruas, para as necessidades sanitárias. O ar estava empestado, e essas pobres crianças, obrigadas a vagar horas e horas, esperavam o fechamento do expediente ministerial para dormirem, como pudessem, nas repartições públicas. Extraordinário, entretanto, o abastecimento: numa cidade de cinco milhões de habitantes, desembarcaram, no espaço de um mês, dois milhões de crianças famintas. Nada faltou: frutas, legumes… e postos de distribuição de alimentos eram encontrados em tôda a cidade.
Em Pequim, tivemos o primeiro contato com a arte tibetana, com seus Dagobas, e vimos as primeiras Stupas. O mais antigo jardim de verão construído na China fora, infelizmente, reconstruído, e o barroco decadente era penoso de se ver.
O Palácio de Verão, com seus maravilhosos telhados, nos demonstrava que a arquitetura chinesa, sempre extraordinária quando vista do alto, se complica e perde o seu mistério, se observada em nível horizontal. Inesquecíveis, porém, o enorme lago artificial, com suas pontes, mais belas que as de Paládio.
De um modo geral, aliás, os monumentos de Pequim são decepcionantes, exceção feita ao Pagode da Colina Perfumada e, sobretudo, do Templo das Nuvens Azuis. Êste, de influência tibetana, tem, nas suas muralhas exteriores, árvores gigantescas que, como uma imensa teia de aranha, vão estendendo seus tentáculos e dominando-o, como em Angcor.
Infelizmente, a Cidade Imperial e o Templo do Céu, habitação provisória dos GV, estavam fechados ao público.
Finalmente a Grande Muralha! Compensava tôdas as dificuldades, todos os sacrifícios. Sua silhuêta deslizando como um rio preguiçoso, numa gama extraordinária de pedras cinza e marrom… Paralela às finalidades estratégicas de defesa, a permanente preocupação de beleza. Em tôdas as viagens que tenho feito pelo mundo, a Grande Muralha me fica como a memória inesquecível de minha vida.
Na monotonia da paisagem chinesa se destacam ainda, como um impacto de beleza, as terras de aspecto bíblico do loess e o Grande Canal, impressionante Amazonas construído pela mão do homem no século VII depois de Cristo.
A visita à Tumba Ming nos mostrou a mais imponente aléia funerária e a única sepultura imperial jamais descoberta.
Com seus tronos de mármore, porcelanas requintadas e objetos de ouro lembrando um Fabergé de melhor inspiração, o único templo que nos ficou de época tão antiga, pois fôra, ao contrário dos demais, construído em pedra, ao invés de madeira.
A medicina chinesa
O Museu do Exército e da Revolução exibe, com orgulho, lembranças da Grande Marcha – epopéia tão surpreendente quanto a invasão da Ásia por Alexandre.
Alguns de nós, presas de febre incontrolável e tendo tentado, sem sucesso, todos os antibióticos que leváramos, reclamamos um médico. Com certa dificuldade e depois de muito parlamentar, já que a medicina estatizada não permite a visita a domicílio, conseguimos, enfim, a presença do doutor. Com competência invulgar, curou-nos em 24 horas. Mas seu sotaque de Boston veio nos mostrar que, tanto para a organização de um atendimento médico de qualidade excepcional, quanto para a construção de suas aterradoras bombas de hidrogênio, a República do Povo tem ainda de se refrescar nas fontes do imperialismo decadente.
Temos os mísseis atômicos
Depois de um dia de pesadelo em que concordáramos, pelo prazer de enxergar de longe os admiráveis tetos da Cidade Imperial, em visitar o Museu de Cêra e as fotomontagens do sofrimento dos camponeses, sob o regime anterior, fomos acordados às três da manhã, por barulho infernal. A parada durou toda a madrugada, o dia e a noite consecutiva. Cartazes apregoavam: “Os imperialistas americanos e os revisionistas russos tremem porque já temos o míssil atômico”.
Pensamos ir espiar a Embaixada Russa que, defendida pelo exército, sofria tôda espécie de vexames e agressões por parte da GV. Até o nome da rua já havia sido mudado para Rua Anti-Revisionista. E para que não pudesse desconhecer as intenções da Nova Revolução, êste nome e os cartazes infamantes foram traduzidos em russo, alemão, francês, inglês e espanhol.
Alphaville
Na viagem entre Pequim e Cantão, fomos acordados pela aeromoça que, distribuindo fôlhas mimeografadas em francês, exigia que cantássemos O Bom Navegador. Ao terminar o hino cívico, não sem provocar irritação geral, entoamos “Au clair de la lune”.
Cantão, com sua vegetação tropical, suas piscinas e seu ar de insouciance, vem provar que não há regime de força que resista ao calor. Na Nápoles chinesa, passeiam homens em manga de camisa. Parques de diversões e cinemas se sucedem num país em que a única distração do povo é decorar os discursos e Pensamentos de seu chefe. Foram os dias mais fáceis de tôda a nossa viagem: Cantão é a única cidade suportável dêsse gigantesco país.
Olhando para trás, para êsse povo que nega seu passado e sufoca sua espiritualidade, a histeria, os comícios, paradas, alto-falantes e ordens em gás néon me fazem pensar numa imensa Alphaville, dificilmente recuperável para o mundo.
Os textos de Elizinha Moreira Salles surpreendem aos que, como eu, não a conheceram pessoalmente, pela acuidade de suas observações e por sua qualidade literária. Vinte anos depois, um grupo de profissionais da produtora Videofilmes, no qual eu estava incluído, visitou a China e lá realizou a série “China, o Império do Centro”, sob a direção de João Moreira Salles, filho de Elizinha. A série foi exibida na extinta TV Manchete, e retrata as mudanças havidas na China depois da morte de Mao. Ainda um país muito pobre, a China de Deng Xiaoping já nos revelava então algumas mudanças radicais que levariam o país a ser a potência que é hoje. O texto de Elizinha e a narração da série, escrita pelo João duas décadas mais tarde, se completam como dois olhares curiosos e inteligentes que contemplam e procuram entender a milenar civilização chinesa.
Excelente testemunho e ótima relação entre o texto e a série. Tenho vontade de revê-la.