Um paraíso cercado de terror

ANJOS DE IPANEMA no Feciba

O Festival de Cinema Baiano encerra-se nesta sexta-feira (26/3) com a exibição do documentário Anjos de Ipanema, de Conceição Senna (1937-2020). Foi o último trabalho da atriz-diretora por trás das câmeras, um resgate afetivo de lembranças do momento em que a Praia de Ipanema foi mais hippie. O assunto já foi objeto da série de TV Dunas do Barato (2017), mas o cinema ainda lhe devia um cumprimento.

No início da década de 1970, a prefeitura do Rio decidiu construir um pier para levar um duto de esgoto até uma distância razoável da praia. A obra fez surgirem ondas perfeitas para os surfistas e dunas que encobriam os banhistas da vista de quem passava na rua. O ponto, conhecido como Dunas do Barato ou Dunas da Gal, atraiu uma comunidade de artistas, poetas, intelectuais, surfistas, publicitários e adeptos da vida alternativa. Gal Costa, a mais icônica habituê, não deu as caras no filme de Conceição, mas vários deles estão em cena, contrastando suas imagens de jovens com as de senhores e senhoras ainda tingidos pelo espírito sorridente daqueles tempos.

Sonia Dias

Enquanto a ditadura vivia sua fase mais truculenta, eles se refugiavam na contracultura, nas drogas e no chamado desbunde. Chacal, Maria Gladys, Evandro Mesquita, Vera Barreto Leite e Sonia Dias (autora de registros preciosos em Super 8), entre outros, relembram não só o comportamento da turma no “território livre” daquele pedaço de praia – onde ninguém ia para se espichar na areia e tomar sol, mas para ficar de pé conversando, como numa festa –, mas também o estilo de vida dos frequentadores. Viagens de ácido, topless pioneiros, pluralidade sexual, corpos não depilados, roupas extravagantes aos olhos dos caretas… Um paraíso cercado de terror por todos os lados.

Anjos de Ipanema é um documentário de Ação! entre amigos. Sem cuidados especiais com a imagem nem com o som (a montagem e a mixagem são cheias de problemas), o filme se vale do clima “familiar” que ainda rola entre os entrevistados, ainda que separados. Uma carioquice ora simpática, ora frívola domina quase tudo, junto a efeitos visuais psicodélicos de gosto duvidoso.

Não há questionamentos sobre participação política ou sua ausência, considerando-se que tudo aquilo ocorria em paralelo à resistência contra a ditadura, prisões, torturas, luta armada, etc. As dunas simbolicamente os apartavam do resto do país, muito embora uma revolução em termos de comportamento estivesse em curso por ali. É interessante, na última parte do filme, cotejar as memórias desses “anjos” com seus filhos, hoje profissionais da cultura bem sucedidos e de comportamento muito mais convencional. Faz pensar que rumos tomamos desde então, para o bem e para o mal.

>> Anjos de Ipanema está em cartaz neste link até o dia 26/3 (o filme passa depois da vinheta e da fala da produtora executiva Aída Marques). 

2 comentários sobre “Um paraíso cercado de terror

  1. Eu morei em Ipanema nesta época. Mas era tão careta que nunca participei do Pier. Embora curtisse as notícias nos jornais sobre a canga de croché do Gabeira.

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