por Vavy Pacheco Borges
Ruy Guerra se diz um “cineasta brasileiro nascido em Moçambique”, colônia portuguesa na África Austral, longa e larga faixa longitudinal de terra à beira de um Índico luminoso. De lá saiu aos vinte anos levando em sua bagagem de futuro homem de cinema leituras fundamentais como Eisenstein, várias críticas na imprensa e primeiras tentativas de filmagens; a principal, um documentário sobre os trabalhadores do porto mais importante da região, “cujas condições de vida pareciam de um campo de concentração”.
Moçambique independente em 1976, Ruy volta 25 anos depois já cineasta internacional para colaborar com a revolução nacional e socialista da FRELIMO, encabeçada por Samora Machel, uma figura que Ruy muito admirou e cuja morte apresenta como término de sua colaboração na formação de um cinema moçambicano. Samora procurava construir uma nação independente unindo inúmeras tribos iletradas e para tal utilizou bastante a imagem. País sem televisão, a tela cinematográfica foi sua lousa através do Instituto Nacional do Cinema. Dessa colaboração, dois documentários (entre cinco realizados) serão exibidos na programação deste ano do É Tudo Verdade.
O mais famoso deles é o aclamado Mueda, Memória e Massacre, filmado no Norte do país, na atribulada região de Cabo Delgado; rica em gás natural, está hoje nas manchetes internacionais devido aos ataques reivindicados pelo Estado Islâmico. Em Mueda anualmente se celebrava através de uma encenação teatral o ataque sofrido pela tribo dos Makonde que, ao fazerem reclamações ao representante do governo colonial, foram massacrados. Condições de filmagem dificílimas dado a pobreza do local e a dificuldade de Ruy não falar o idioma dos locais que trabalhavam no espetáculo. Há polêmicas quanto ao número de vítimas e o significado dado a este massacre, pois o governo da FRELIMO pretendia apresentá-lo como o marco inicial da Guerra da Independência. Desgostoso com interferências do partido, Ruy não quis filmar as modificações sugeridas e não acompanhou a edição da versão final, mas assina o filme .
O segundo documentário se chamaria Raízes da Traição, porém Ruy escolheu o titulo Os Comprometidos – Atas de um Processo de Descolonização. Resulta de um convite governamental para Ruy filmar um julgamento inédito, preparado durante vários meses por uma autodenúncia como “comprometidos” por parte dos antigos colaboradores do regime colonial, aos quais Samora acenava com a possibilidade do perdão para inocentá-los e esvaziar as tensões do pós-revolução. A equipe foi formada com alunos de Ruy, num trabalho intenso durante dias. O filme foi depois transformado em série de TV e, ao que parece, os rolos desapareceram num incêndio no INC em 1993.
A importância fundamental do conjunto dos documentários me parece ser seu valor histórico e antropológico. Os dois documentários escolhidos são uma amostra do forte posicionamento político de Ruy diante de sua vida e de sua arte, que aliás ele nunca separou. Vivendo em Portugal nos anos 1990, Ruy escreveu em crônica para o Estadão sobre sua “tristeza pelo fracasso do generoso projeto de uma sociedade não racista e socialista, roída pela guerra, pelo banditismo, pela ingenuidade, pela corrupção e pelos interesses políticos e econômicos mais poderosos das potências internacionais”.
Vavy Pacheco Borges é biógrafa de Ruy Guerra, autora de Ruy Guerra – Paixão Escancarada, e produtora do filme O Homem que Matou John Wayne, também em cartaz no festival.
>> Os filmes da Homenagem a Ruy Guerra estão em cartaz na plataforma SPCine Play até 8 de maio.