Publico aqui o texto do prefácio que escrevi, em fevereiro de 2020, para o livro FILMAR A AMAZÔNIA, organizado por Gustavo Soranz.
“A Amazônia e seus povos fazem parte de um arquétipo do imaginário em todo o mundo.” A frase é do cineasta Jorge Bodanzky em entrevista para um livro que fizemos juntos sobre sua obra. Esse arquétipo do imaginário diz respeito a muitas coisas: o meio ambiente, os povos originários, as lendas de cidades perdidas, a Natureza exuberante… E também a dizimação das culturas indígenas, os projetos de colonização predatória, o desmatamento, a cobiça internacional.
Tudo isso tem se refletido no cinema que se faz na Amazônia desde que o pioneiro Silvino Santos singrou suas águas e embrenhou-se por suas matas com uma câmera. A Amazônia brasileira tem sido nossa maior reserva não só de biodiversidade, mas também de matéria simbólica e audiovisual. Filmá-la é tão fascinante quanto desafiante. Requer disponibilidade e responsabilidade.
Com frequência, é capturada por um cinema meramente extrativista, que suga suas energias sem deixar nada em troca, ou quando muito um punhado de clichês ecológicos ou etnográficos quaisquer. Este livro trata de algo bem diferente. Aqui estão quatro realizadores (ou duplas) que nutriram – e alguns ainda nutrem – uma relação sustentável e profunda com a região. São convivências de longa duração e que renderam parte considerável de suas respectivas obras. Mais que isso, contribuíram para um melhor conhecimento e conscientização dos problemas e necessidades da Amazônia.
Um traço interessante a destacar é o fato de que três dos seis documentaristas entrevistados por Gustavo Soranz ou Fernanda Bizarria têm alguma ascendência estrangeira ou, no caso de Adrian Cowell, é estrangeiro. Todos os trabalhos de Cowell e grande parcela dos realizados por Jorge Bodanzky foram produzidos por televisões europeias. Isso não deixa de refletir o interesse “de fora” pela Amazônia. Um interesse que, em última instância, pode assumir faces diferentes, da cobiça pura e simples às iniciativas de preservação, passando pela atenção etnográfica e pela denúncia da destruição.
Bodanzky, filho de pais austríacos emigrados para o Brasil na década de 1930, estudou cinema em Ulm na época do Novo Cinema Alemão e foi parar na região amazônica por uma casualidade do trabalho jornalístico. Vincent Carelli, nascido na França e radicado no Brasil, migrou para o cinema a partir do ofício de indigenista, enquanto sua parceira Mari Corrêa iniciou-se no filme etnográfico em Paris. O único com raízes amazônicas é o manauara Aurelio Michiles, bisneto de italiano. Todos, porém, têm a Amazônia como sua pátria de trabalho.
Vale ressaltar as diferenças significativas na forma como cada um deles se aproxima de seus objetos mediante o documentário.
Podemos dizer que Michiles mantém um vínculo de origem com a Amazônia e costuma abordá-la numa perspectiva histórica, humanística e culturalista. Teatro Amazonas privilegiou o aspecto humano da construção daquele marco da cidade de Manaus. O próprio cinema foi contemplado com O Cineasta da Selva, sobre Silvino Santos (filme que desenha uma pequena genealogia do cinema amazonense), Tudo por Amor ao Cinema, perfil do conservador de filmes amazonense Cosme Alves Neto, e Que Viva Glauber, que destacou a passagem de Glauber Rocha pelo Amazonas. O ciclo da borracha aparece em A Árvore da Fortuna e em novo projeto sobre a atuação do cônsul britânico Roger Casement na investigação do uso de mão de obra escrava indígena na extração de borracha no Putumayo, no início do século XX.
A filmografia amazônica de Jorge Bodanzky, por sua vez, tem um caráter expedicionário e aventuresco. É fruto, em boa parte, de sua associação com jornalistas e produtores alemães como Wolf Gauer, Karl Brugger, Gernot Schley e Ortwin Bruckner. Se o clássico Iracema, uma Transa Amazônica (dirigido em dupla com Orlando Senna) chamou a atenção do mundo para as queimadas na floresta e a devastação rodoviária e madeireira, outros tantos documentários seus são insights originais de questões brasileiras como a ocupação econômica da Amazônia, a manutenção e desaparição de culturas indígenas, a imigração externa e interna, e as ações da sociedade civil em pontos remotos do país. De sua colaboração com colegas europeus resulta um original cruzamento do olhar estrangeiro com a perspectiva autóctone que ele próprio acrescenta.
O trabalho de Bodanzky transbordou do cinema para as mídias digitais, sendo dele as primeiras criações institucionais em CD Rom e website sobre a Amazônia. Essa fronteira foi ainda mais expandida com o célebre projeto Navegar Amazônia, que levava a internet e oficinas audiovisuais a povos ribeirinhos não contemplados pela aldeia global.
Nessa perspectiva de formação e comunicação se enquadram também as atividades da ONG Vídeo nas Aldeias, criada por Vincent Carelli e Virgínia Valadão em 1986. A ideia de uma antropologia visual compartilhada é posta em prática em toda a sua amplitude. Por mais de três décadas, grupos indígenas vêm se conhecendo mutuamente e assumindo a produção de suas próprias narrativas com imagem e som. A existência de um cinema indígena hoje no Brasil se deve majoritariamente à ação de Carelli e de sua parceira mais recente, Mari Corrêa, junto a diversas tribos, muitas delas da Amazônia.
Os filmes produzidos nesse âmbito fazem sucesso e angariam simpatia em mostras e festivais no Brasil e no exterior. Resultados desse processo e de seus desdobramentos, surgiram quatro longas-metragens de primeira linha, todos bastante premiados. O próprio Carelli assinou Corumbiara, que recolhia ecos de um massacre de índios ocorrido em 1985, e Martírio, crônica solidária da luta dos Guarani-Kaiowá pela retomada de suas terras. As Hiper Mulheres, de Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro, mesclou ficção e documentário em torno da preparação de um ritual feminino na tribo kuikuro. O Mestre e o Divino, de Tiago Campos Torres, mapeou a longa relação entre o missionário alemão Adalbert Heide e o cineasta xavante Divino Tserewahú. Em todos esses trabalhos desponta uma forte e crescente interação entre índios e não índios.
Num modelo mais clássico, centrado no ponto de vista dos indigenistas e no foco de denúncia, o cinema do inglês (nascido na China) Adrian Cowell (1934-2011) foi pioneiro em levar ao conhecimento do mundo a devastação da Amazônia e as constantes ameaças aos seus povos originários. O antológico A Tribo que se Esconde do Homem, de 1970, já registrava a saga dos irmãos Villas Boas, na década de 1960, para contatar e levar para o Xingu os índios Panará ou Kren-Akarore. A série A Década da Destruição, veiculada na BBC inglesa, acompanhou em várias frentes a destruição da floresta ao longo dos anos 1980 e tornou-se peça-chave do movimento em sua defesa.
Como parte de seu ativismo, Cowell ainda escreveu dois livros sobre índios brasileiros, The Heart of the Forest e The Tribe that Hides from Man, além de um livreto sobre a série A Década da Destruição.
A amizade com Chico Mendes foi um dos elos mais fortes de Cowell com a Amazônia, muito embora suas viagens à região remontem a 1958, quando veio pela primeira vez numa expedição de jovens cineastas. Era fascinante ouvir os relatos do documentarista sobre sua militância contra a especulação depredadora, suas incursões floresta adentro junto aos Villas Boas, Apoena Meirelles, Sidney Possuelo. E muita malária, que atingiu também sua mulher e seu permanente colaborador Vicente Rios.
A parceria de Cowell com o brasileiro Vicente Rios foi uma das mais sólidas do documentarismo mundial. Juntos, em dezenas de filmes e programas de TV, eles fizeram a crônica da colonização, do desmatamento e dos incêndios na floresta. Documentaram as campanhas ambientalistas, a morte de Chico Mendes, a criação das primeiras reservas extrativistas e os primeiros contatos com os índios Uru Eu Wau-Wau. Sempre com o apoio da Universidade Católica de Goiás e a codireção, produção local e fotografia a cargo de Rios.
É uma felicidade que o acervo de experiências desses documentaristas tenha sido recolhido por Gustavo Soranz nas entrevistas que compõem este livro essencial. Aqui eles não só recontam suas aventuras pela Amazônia – e não só lá –, como também refletem sobre o cinema etnográfico, as diferentes atitudes dos cineastas perante as comunidades indígenas, a linguagem do documentário e o contexto político e ambiental da região.
Ler o que esses cineastas disseram pode ser iluminador num momento (o ano de 2020) em que o Brasil está mais uma vez no centro do debate ambientalista por conta da fatal irresponsabilidade do governo Bolsonaro. A “guerra” declarada pelos atuais governantes contra os índios, as ONGs e os mecanismos de defesa da floresta bem mereceria novas e potentes investidas desses gigantes do cinema amazônico.
O livro nos recorda também a importância que tinha a Mostra Amazônica do Filme Etnográfico, em cuja edição de 2009 eu tive a honra de servir como jurado. O evento, conduzido com paixão por Selda Vale da Costa e a brava equipe do NAVI, era um polo efervescente de exibição e debate de uma produção e de questões fundamentais para o conhecimento profundo do Brasil.
Afinal, filmar a Amazônia é criar representações duradouras de matas, cidades, tribos e culturas que cobrem 61% do território brasileiro. É penetrar na grande reserva de vida de que o país não pode se descuidar.
FILMAR A AMAZÔNIA
Gustavo Soranz (org.)
Rizoma Audiovisual. Manaus, 2020
Oi Carlinhos
Que legal a sua resenha quero ler o livro!
Grande abraço até sexta no Real Virtual ,muito bom o filme do Takumã!