Voyeurismo cirúrgico

DE HUMANI CORPORIS FABRICA no streaming

Ou eu não entendi nada da proposta, ou Di Humani Corporis Fabrica é um dos filmes mais desagradáveis já feitos. Para os hospitais públicos parisienses, é uma peça de contrapropaganda. Filmado com microcâmeras low-tech em 11 hospitais, o documentário (melhor dizendo, dor-cumentário) registra uma série de intervenções cirúrgicas complexas, arriscadas e sangrentas. Sem nenhuma razão além da exposição crua.

Então, que tal assistir à implantação de parafusos na cabeça de um homem? Preferem uma cirurgia de catarata ou um aflitivo procedimento intrapeniano? Vocês estão convidados a testemunhar em detalhes uma atribulada operação de próstata hiperdesenvolvida e uma cesariana sob risco de vida. Querem conhecer pormenorizadamente a aparência de um tumor no seio ou ver uma placenta em close sendo retalhada como num açougue? Pois esse é o seu filme!

Nada a ver com a concepção espetacular do clássico Viagem Fantástica, de Richard Fleischer (1966), em que um submarino tripulado era reduzido a proporções microscópicas e injetado na corrente sanguínea de um cientista em perigo de vida. Di Humani Corporis Fabrica não está interessado em dramaturgia, nem tampouco em esclarecimento científico. Algumas operações transcorrem sem que saibamos sequer o órgão que está sendo submetido. A abordagem está entre a tecnicalidade médica e a experimentação visual de mau gosto. Afinal, o Youtube está cheio de incursões como aquelas pelas entranhas do corpo humano.

Os diretores e cinegrafistas Verena Paravel e Lucien Castaing-Taylor (autores do espantoso – no bom sentido – Leviathan) nos permitem ouvir as conversas dos médicos durante os procedimentos. Eles fazem piadas, queixam-se do trabalho difícil, expõem insuficiências operacionais e discutem entre si sobre acidentes de percurso. A intenção, ao que parece, era deixar transparecer o lado humano das equipes, mas, a meu ver, só faz aumentar a agonia do espectador.

Quando abandona as salas de cirurgia e as imagens de laparoscopia, o filme consegue ficar ainda mais indigesto. Vemos idosos desamparados nos corredores ou gemendo de dor em enfermarias. Um homem com transtornos mentais tenta sair do hospital. Clamores de “quero morrer” são entreouvidos. O ritual de vestir um morto é acompanhado minuciosamente como se fosse uma sessão de maquiagem.

O epílogo se estende sobre murais surreal-pornográficos enquanto o staff de um hospital se diverte ao som de Gloria Gaynor. Depois de conferir o uso extensivo de bisturis, agulhas, sugadores, chaves de fenda, martelos e furadeiras em blocos de carnes e ossos, nada melhor que uma festinha para arrematar a sessão de pornografia médica.

>> De Humani Corporis Fabrica está na plataforma Mubi. 

 

2 comentários sobre “Voyeurismo cirúrgico

  1. Não vi o filme e não verei. Pelo que você escreve e pelo trailer, me parece um documentário com uma perspectiva mórbida. Se você esquece o humanismo na hora de abordar as patologias e curas e exagera em uma perspectiva impressionista aguçada por poderosos equipamentos, estamos no domínio da negação da ciência. Chamem o Drauzio!

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