A Trilogia da Imagem de Evaldo Mocarzel

A plataforma gratuita SESC Digital está disponibilizando até 13 de agosto os três documentários realizados por Evaldo Mocarzel, entre 2002 e 2008, com pessoas à margem da sociedade dita organizada. Reproduzo abaixo os textos que produzi sobre cada um dos filmes em suas respectivas épocas.

À Margem da Imagem: a culpa do caçador

Na nova edição ampliada de Cineastas e Imagens do Povo (Cia. das Letras, 2003), Jean-Claude Bernardet analisa À Margem da Imagem sob o ponto de vista da entrevista em crise. De um lado, elogia o filme por “praticar a entrevista convencional, mas fornecer informações que a solapam”. De outro, condena Evaldo Mocarzel por não estabelecer uma real interlocução com seus entrevistados, com isso ratificando um preconceito segundo o qual “não se dialoga com entrevistado pobre”.

A cobrança de Bernardet revela um desejo utópico de conversação entre cineastas e povo. Por esse raciocínio, a meta ideal, num documentário sobre moradores de rua, seria a plena interação entre os dois polos. Em vez de perguntas e respostas, uma discussão franca, levada até as últimas conseqüências. Talvez seja exigir demais, mesmo de um filme que incorpora o processo de documentação como um de seus assuntos. À Margem da Imagem não mostra o trabalho da equipe como uma tentativa de diálogo, mas como um exercício de autocrítica. Se há um tema a concorrer com a própria vida dos sem teto de São Paulo, este é a culpabilidade dos caçadores de imagens. O filme opera na perspectiva do exame de consciência. E se pergunta, a todo momento: como enfocar a miséria sem explorá-la enquanto espetáculo ou assumir uma atitude paternalista?

A melhor resposta talvez não esteja na exibição dos bastidores das entrevistas, nem mesmo nas confrontações entre caçadores e caçados – sejam elas diretas, como na impactante fala final, ou indiretas, como nas referências ao episódio com Sebastião Salgado. A maior contribuição de Mocarzel ao subgênero de documentário que costumo chamar de “Mais Fortes São os Falares do Povo” é a atenção que dispensa à auto-imagem dos entrevistados. Embora pouco se ouça das perguntas que orientaram as conversas, percebe-se que havia uma pauta dedicada à maneira como aquelas pessoas viam a si próprias, dentro e fora do filme. Daí os comentários frequentes sobre aparência e higiene pessoal ou sobre o fato de estarem participando de um filme a respeito de moradores de rua.

Mocarzel oferece o documentário como uma espécie de espelho, onde as pessoas se miram e se auto-avaliam. Isso as afirma como individualidades, em lugar de reduzi-las a meros personagens de um discurso generalizante sobre uma categoria social. Não são apenas “matérias-primas”, mas agentes críticos capazes de refletir sobre a vida que levam, ainda que em níveis diferentes de conformação às normas. O fato de não haver propriamente um diálogo entre elas e o documentarista em nada compromete a proposta do filme. Pelo contrário, sublinha com honestidade um abismo de classe que nunca deve ser escamoteado.

À Margem do Concreto: sem margem de redenção

O movimento de moradia retratado em À Margem do Concreto é um fenômeno social tipicamente paulista com know how importado da Argentina. Como já vimos no documentário Dia de Festa, de Toni Venturi, é razoavelmente organizado, tem lideranças sólidas e conquistas importantes. A ocupação do prédio nº 911 da Av. Prestes Maia, iniciada em 2002, é tida como a maior ocupação vertical da América Latina. Na semana do carnaval, as 1.630 pessoas que residem nos 22 andares do edifício estiveram mais uma vez ameaçadas de expulsão. As camadas progressistas da cidade se mobilizaram em sua defesa, e a reintegração do imóvel foi adiada por 60 dias. Mas o impasse continuava.

O filme de Evaldo Mocarzel é o segundo tomo de sua tetralogia sobre a vida à margem da opulência paulistana. Em À Margem da Imagem, ele abordou os moradores de rua. Em À Margem do Concreto, recolhe as razões e focaliza as práticas do movimento de moradia, que se vale de uma garantia constitucional negada pelo sistema da propriedade privada.

Quando ouve os líderes das ocupações, Mocarzel se interessa por suas histórias pessoais, conferindo-lhes uma dimensão humana que faz deles algo mais que “vozes” do movimento. Surpreende que histórias de violência familiar estejam na origem de tantas trajetórias. Sem os refrescos de humor e o fairplay marginal de À Margem da Imagem, este é mais duro de ver, mais feio e triste. Um filme tão “difícil” quanto denso e oportuno. Os dois últimos adjetivos podem explicar os prêmios de melhor filme do júri popular no Festival de Brasília e de melhor documentário do Festival do Rio de 2006.

Mocarzel não santifica ninguém, nem escamoteia a diversidade de métodos e ideologias que convivem no movimento. Estimulados por suas perguntas, aparecem tanto a objetividade pragmática de Verônica Kroll, líder do Fórum dos Cortiços, como o discurso dogmático e quase folclórico de Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, veterano militante do Movimento de Moradia do Centro (MMC).

Mais do que nunca, percebe-se que os documentários de Mocarzel não se contentam em “ouvir”, mas tendem a “provocar”. Suas entrevistas propõem questões e dilemas às pessoas. O preço disso é incentivar a ênfase em certos estereótipos culposos, como as acusações à classe média (ou “classe merda”), eterno saco de pancadas do doc social pseudo popular. Mas quando o método funciona bem, temos grandes momentos – como os comentários dos ocupantes sobre a cobertura do movimento pela mídia, que geralmente os classifica como “invasores ilegais”. Aqui o diretor soma pontos a seu projeto autoral de colocar a imagem do povo em discussão não por intelectuais, mas pelo próprio povo.

A câmera operada pelo tarimbado Jorge Bodanzky capta situações altamente reveladoras, como a reunião para debater a conduta de um casal belicoso que havia chamado a polícia, assim infringindo uma regra básica da cartilha de ocupações. O filme conclui com uma sequência de antologia. A tomada de um prédio no Centro de São Paulo é captada de fora e de dentro, num registro visceral. Para reconstituir a dinâmica e o fragor do evento, o montador Marcelo Moraes fez um belíssimo trabalho de articulação das imagens filmadas por três câmeras, sendo que uma entrou no edifício com os ocupantes.

Não é feliz o desfecho desse episódio próximo da guerrilha urbana. Mocarzel optou pelo anticlímax “para que as pessoas saíssem da sala de cinema com essa indignação, para que não purgassem em lágrimas a energia do inconformismo diante daquela dramática situação”. Isso só reafirma À Margem do Concreto como um filme realista e incômodo, sem margem de redenção.

À Margem do Lixo: experimentações à margem

No terceiro tomo de sua Trilogia da Margem, Evaldo Mocarzel filmou catadores de lixo de São Paulo, todos dotados de consciência de classe e organizados em movimento. Os catadores aparecem eventualmente narrando suas próprias imagens num estúdio (à la Jean Rouch), enunciando suas ideias políticas ou empenhados no seu movimentado dia-a-dia.

Este doc não tem a mesma força dos dois primeiros (À Margem da Imagem e À Margem do Concreto), talvez por serem frutos de uma fase de transição na carreira de Mocarzel.   As cenas de trabalho na rua, gravadas principalmente pelo diretor de fotografia Gustavo Hadba, são ricas em angulações e detalhamento da ação dos catadores, evidenciando um forte desejo de experimentação por parte do diretor.

O filme é pontuado por três sequências magistrais que mostram o processo de reciclagem de papel, plástico PET e alumínio. Evaldo inspirou-se em Dziga Vertov e na escola soviética para propor uma edição baseada em estrofes matemáticas de fotogramas. São pequenos ensaios de puro ritmo, cor e movimento, que me lembraram também o curta O Canto do Estireno, de Alain Resnais (1958).

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