A consciência conservadora em crise
Em O Mensageiro, Lúcia Murat volta uma vez mais à fonte de sua usina criativa: a ditadura civil-militar que a prendeu e torturou. Dessa vez, porém, ela altera o ponto de vista habitual das mulheres que sofreram nas mãos dos ogros de verde-oliva. Seu personagem central aqui é um jovem soldado em crise de consciência perante a barbárie dos seus pares.
A ação se passa em 1969. O catarinense Armando (Shico Menegat) serve na Fortaleza de Santa Cruz, em Niterói, sítio histórico importante mas também célebre local de torturas durante o regime militar. Suas dúvidas se intensificam no contato com a presa política Vera (Valentina Herszage), igualmente jovem, vítima de severas atrocidades. Num ensaio de compaixão, mas também de interesse romântico, ele aceita servir de mensageiro entre Vera e sua mãe (Georgette Fadel), mulher católica que espera contar com a compreensão dos militares para salvar a filha.
Armando é um rapaz dividido entre a brutalidade anticomunista obsessiva que lhe impingem as doutrinações tanto da caserna quanto da igreja conservadora e a repulsa à violência estampada no sangue dos torturados. Nesse ponto, Lúcia Murat e seu corroteirista Tunico Amâncio exploram contradições contidas na gênese do Mal segundo Hannah Arendt.
Não que O Mensageiro se proponha a “compreender” a crueldade. Esta se apresenta em todo o seu horror nas figuras do major encarregado da fortaleza (Bruce Gomlevsky) e do soldado João (Higor Campagnaro). Trata-se de dramatizar uma falta de vocação para o Mal, vista como fraqueza pelos colegas de farda empenhados na tortura, mero “serviço profissional”. Armando não deixa de ser um conservador autoritário, mas existe uma linha que ele se nega a cruzar e uma culpa da qual é difícil se livrar.
Afora os ogros de verde-oliva e a moça idealista, tudo no filme é marcado pela divisão e o antagonismo. Os pais de Vera representam a fratura numa família de classe média tradicionalista. Armando tem sua própria fratura espelhada na forma como projeta a imagem de Vera na operária Marialva (Beatriz Barros). A igreja católica expõe sua cisão entre o padre progressista argentino, adepto da opção pelos pobres, e o capelão da fortaleza, parceiro da ideologia militar. O filme, coprodução entre Brasil e Argentina, se conclui com um letreiro sobre a diferença entre o país-irmão, que condenou mais de mil torturadores, e o Brasil, que jamais puniu um ditador ou torturador.
Embora tenha passagens de sugestão mais indireta – até forçar alguém a subir uma escada pode ser uma forma de tortura –, O Mensageiro exibe a linguagem mais dura que Lúcia Murat utiliza nos seus filmes de ficção. Há diálogos claramente didáticos e expositivos, culminando com uma sequência nos dias atuais em que a própria diretora aparece como uma professora fazendo palestra sobre o perdão em Hannah Arendt. “Perdoar não é esquecer”, diz ela, certamente aludindo ao tratamento dado ao personagem Armando.
O fato é que Lúcia não abre mão de discutir diretamente os muitos meandros do autoritarismo brasileiro. Mesmo que sacrifique a inteireza do filme com esse tipo de “assinatura”.
08/10/2023 – Estação NET Gávea 4 – 19:15
08/10/2023 – Estação NET Gávea 5 – 19:15
09/10/2023 – Cine Odeon – CCLSR – 13:30

