Festival do Rio 2023: O Coro do Te-Ato e Eu Sou Maria

Arquivos selvagens de uma caravana dionisíaca

“Ensaio Geral do Carnaval do Povo” – era assim que se chamava a caravana fomentada por Zé Celso Martinez Correia que percorreu o Brasil em folia dionisíaca no ano de 1979. Participantes de vários estados se engajavam na trupe para promover atos artísticos nas ruas, misturando teatro, música, candomblé, nudez e afrontas contra o regime militar. Entre eles estava a cineasta, socióloga e pesquisadora Stella Oswaldo Cruz Penido, que assina a direção desse resgate da maior importância.

O Coro do Te-Ato retira do baú uma pletora de registros selvagens das atividades do “coro” (no sentido grego) que, partindo do Teatro Oficina, se ramificou pelo Rio de Janeiro, Centro-Oeste, Norte e Nordeste. A polícia, naturalmente, estava sempre no encalço. Os grupos sofriam censura, suspensão de atividades e ameaças, mas usavam a promessa de abertura do governo Figueiredo como salvo conduto para seguir em frente. E não era só da repressão oficial que levavam pauladas. Na Ceilândia, mal compreendidos pela massa, foram atacados com melancias inteiras. Parte da classe artística os criticava por supostamente provocar a ditadura.

Tudo isso é lembrado em rodas de conversa promovida por Stella com remanescentes do coro entre 2008 e 2022. Eles e elas recordam histórias de convivência, canções, manifestos e os belíssimos cadernos coletivos que produziam no calor dos acontecimentos. Um encontro de filhas de alguns recolhe os ecos de um tempo efervescente que ficou para trás.

O filme retraça também as relações mantidas pelo Oficina, à época, com a gênese do Partido dos Trabalhadores, a UNE, a comunidade LGBT e a Colônia Juliano Moreira.

Renunciando a qualquer explanação externa (nem mesmo em letreiros), Stella confia nas conversas não muito disciplinadas dos participantes e na força bruta dos arquivos para dar uma ideia daquele movimento. A presença de Zé Celso como o guru da festa é mais um indicativo da falta que ele já nos faz.

11/10/2023 – Estação NET Gávea 4 – 17:00
11/10/2023 – Estação NET Gávea 5 – 17:00
12/10/2023 – Cine Odeon – CCLSR – 10:30 

 

Afirmação pela diferença

Como sugere o título, Eu Sou Maria é uma história de afirmação. A adolescente Priscila Maria da Silva não gosta que a chamem pelo primeiro nome. Ela é marrenta e tem dois grandes desejos: frequentar bailes funk na sua comunidade em São Gonçalo (RJ) e estudar num “colégio forte”. Boa em redação, por causa disso ganha uma bolsa em escola da Zona Sul carioca e, junto com mais dois bolsistas, vai enfrentar a discriminação dos branquinhos da elite.

O longa de Clara Linhart trabalha dois mundos aparentemente inconciliáveis e não foge de alguns estereótipos de representação. Mas o roteiro de Sonia Rodrigues, baseado em seu romance juvenil homônimo que adapta o mito dos 12 trabalhos de Hércules, consegue abrir brechas para alguma complexidade. Veja-se, por exemplo, a diferença entre a prudência de Maria e a irreflexão de seu amigo Zilton, também bolsista. Diante dos preconceitos dos colegas em relação a bolsistas, ele primeiro tenta se enturmar bancando o exótico da periferia e depois se rebela. Maria, no entanto, resiste à falsa igualdade, compreende o jogo e se impõe justamente pela diferença.

O fato de Maria ser negra é importante, mas não decisivo na trama, uma vez que os outros bolsistas são brancos e igualmente importunados. A figura dos pais também ganha nuances interessantes, principalmente em função de preconceitos de parte a parte que se apresentam dissimulados como cuidado para com os filhos.

Eu Sou Maria deve falar de perto à plateia adolescente com esse inventário de observações no fictício Colégio Ascensão (social, leia-se). A insolência dos alunos, o desrespeito para com os professores, o bullying e as intrigas em tempo de internet formam um retrato do que acontece hoje em tantas escolas privadas. Mas há lugar também para a amizade e o romance, em contraste com a violência da alternativa mais à mão para os jovens pobres: o tráfico, a violência e a morte.

A direção de Clara Linhart é objetiva e sem adornos. Os diálogos quase sempre fluem muito bem, e o elenco dá conta do recado com legitimidade. Vale destacar o trabalho coletivo com a garotada que interpreta os alunos. Elas e eles são a alma do filme.

11/10/2023 – Estação NET Gávea 1 – 20:45
11/10/2023 – Estação NET Gávea 3 – 20:45
12/10/2023 – Estação NET Rio 5 – 19:00

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