“Brasileiros” da África abrem mostra Aída Marques

Aída Marques devia se chamar Aídas. Ela é múltipla: professora, pesquisadora, curadora, produtora, cineasta, escritora e artista plástica. Todas essas aptidões estão, de alguma forma, à mostra na Ocupação Aída Marques, em cartaz no Estação Net Rio.

No último dia 23 ela abriu a exposição E Foram Felizes para Sempre…, composta de intervenções artísticas em fotografias de casamentos tradicionais dos anos 1950. Nesta segunda-feira, 5/2, o cinema inicia uma mostra com 11 documentários de sua lavra sobre assuntos que vão do Benin a Nelson Pereira dos Santos, de heroínas trágicas a Abdias Nascimento.

Mais adiante, ela vai lançar os livros Rio, 40 Graus, o Moderno Cinema Brasileiro (3 de março) e Encontros com Nelson Pereira dos Santos (10 de março), este em parceria com Elianne Ivo. O autor de Vidas Secas, aliás, foi objeto do belo documentário Nelson Pereira dos Santos – Vida de Cinema, dirigido por Aída e Ivelise Ferreira, que estreou em fins do ano passado e passou em Cannes. Em seu currículo estão, ainda, os livros O Cinema de Nelson Rodrigues e Ideias em Movimento, referência no ensino de cinema e audiovisual nas universidades brasileiras.

Como se vê, estamos diante de uma artista-intelectual incansável que se lança através de fronteiras. A mostra de filmes, por exemplo, começa com o inédito Agudás – Os “Brasileiros” do Benin, gravado em sua quase totalidade nesse país africano, antigo Reino de Daomé, de onde partiram muitos milhares de cativos para serem escravizados no Brasil. Com a parceria de Gustavo Pia e do antropólogo e fotógrafo Milton Guran no roteiro, Aída nos oferece uma coloridíssima introdução ao Benin atual. Ao mesmo tempo, abre caminho para uma história complexa que merece ser conhecida por todos os brasileiros. Daqui e de lá.

Sim, porque muitos beninenses de hoje se consideram um pouco brasileiros. São os agudás, comunidade formada pela união de ex-traficantes de mão de obra escrava e escravizados que retornaram à África depois da abolição da escravidão no Brasil. Formou-se uma insólita aliança entre comerciantes e “mercadorias” – como eram considerados os negros comprados para serem enviados à América e à Europa. Os descendentes desses dois grupos deram continuidade à tradição dos agudás, absorvendo práticas levadas do Brasil – e de Portugal por extensão.

Daí que se encontrem famílias Silva, Santos, Medeiros, da Costa, Piedade e Aguiar nas cidades beninenses. A feijoada, o cozido, o pé de moleque, a farofa e a tapioca são iguarias frequentes na mesa da antiga Daomé. As ruas ainda ostentam casarões de estilo afro-brasileiro, e a bandeira do Brasil aparece em comemorações e festejos como o bumba meu boi. Uma nova geração estaria agora revalorizando os traços de uma cultura agudá.

Para Milton Guran, essa aliança teve o efeito de superar a cicatriz do tráfico de pessoas escravizadas. Mas nem tudo é certeza sobre isso. As atitudes perante o passado escravocrata variam entre a perpetuação de uma memória e o desejo de esquecimento. “Uns venderam os outros e alguns compraram os outros. Foi uma história de comércio”, sintetiza o artista visual Romuald Hazoumé, um dos vários artistas e historiadores entrevistados por Aída.

Em vários relatos destaca-se o personagem de Francisco Félix de Souza, o primeiro de uma dinastia Chachá, feito vice-rei de Uidá e o maior traficante da era escravocrata. Interpretado por Klaus Kinsky, ele estava no centro do filme Cobra Verde, de Werner Herzog. Mas Aída não termina o filme sem a palavra de um soberano em pleno poder: é Akkani Adédunloyé Adéromola, rei de Ketu, que profere uma belíssima mensagem de bendição ao povo brasileiro na língua iorubá.

O filme incorpora trechos de um poema, leitura dramatizada e uma trilha musical original de Tim Rescala. A fotografia principal de Luis Abramo destaca o apelo visual da cenografia urbana, elemento fundamental nesse bonito painel de um pedaço longínquo de Brasil.

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