O fim e o princípio de uma cidade

MEMÓRIAS DA CHUVA

Esse lindo documentário integrou a minha seleção de melhores de 2023. Ainda permanece inédito no circuito comercial.

As imagens recentes do açude do Castanhão, no Ceará, são a prova de um grande equívoco. Com menos de 5% de sua capacidade, é uma vasta área semidesértica apenas pontuada por poças d’água. Quando o governo do estado iniciou sua construção, em 1995, o Castanhão era a grande esperança para resolver o problema da seca e normalizar o abastecimento de água em Fortaleza. A história desse relativo engano foi contada de maneira cativante no documentário Memórias da Chuva.

Esse é um filme que só existe da forma que existe porque outros documentaram o que se passou nos últimos vinte e poucos anos. O diretor Wolney Oliveira (Os Últimos Cangaceiros, Soldados da Borracha) teve a felicidade de coletar vídeos gravados por populares – e principalmente por Vauvernagues Almeida, devotado cronista da cidade de Jaguaribara (veja aqui o seu canal no Youtube). Foi essa localidade, a 162 km da capital, que os moradores tiveram que abandonar para dar lugar à construção do açude.

Os vídeos mostram cenas comoventes da cidade sendo demolida e de pessoas sendo obrigadas a deixar suas casas, suas plantas e seu habitat em troca de indenizações pífias e de uma nova Jaguaribara que não restituiria o senso de comunidade perdido. Wolney confronta muitas dessas imagens com a atualidade, evidenciando diferentes apreciações das mudanças vividas. Há os que ainda lamentam o que perderam, mas também os que reconhecem melhorias na qualidade de vida em relação ao passado. Se nos anos 1990 alguns jovens manifestavam a esperança de encontrar modernidade e conforto na nova Jaguaribara, o que prevalece hoje é um certo desencanto com uma cidade onde os jovens já não querem mais permanecer.

A memória da antiga Jaguaribara segue atraindo a visita de antigos moradores, que reconhecem diante da câmera os locais onde ficavam suas casas e seus negócios. Uma filmagem subaquática revela os restos da cidade submersos. O coveiro idoso procura o lugar onde ficava o cemitério, primeira parte da cidade a ser transferida e que ocasionou a seguinte manchete de um jornal: “Os mortos são os primeiros habitantes da nova Jaguaribara”. Por sinal, a exumação dos corpos e a transferência dos santos da igreja são outras cenas inestimáveis gravadas pela população, gente marcada por um catolicismo fervoroso.

O filme tem a virtude de traduzir a complexidade desse tipo de empreendimento. Não faz o elogio do desenvolvimentismo, nem a condenação pura e simples da remoção. Parte da população de Jaguaribara resistiu durante sete anos à  construção do Castanhão. Mais cedo ou mais tarde, o modelo de açude raso estava fadado à evaporação, o que adveio após a euforia inicial e hoje se reflete em poluição das águas, miséria da piscicultura e ameaça ao abastecimento de Fortaleza. Afora o “genocídio cultural” citado por um dos participantes do filme.

Eis o dossiê de uma miopia institucional que sabota as boas intenções de um projeto. Como cinema, Memórias da Chuva é uma excelente acareação entre dois tempos e um tributo à memória oral e audiovisual produzida pelo povo.

>> Memórias da Chuva ainda não tem data de lançamento prevista.

3 comentários sobre “O fim e o princípio de uma cidade

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