Os curtas impecáveis de Roberval Duarte

O Estação Net Botafogo vai fazer uma sessão especialíssima nesta quarta-feira (26/4) às 19h com os quatro curtas de Roberval Duarte, cineasta carioca com múltipla atuação na cultura da cidade. São quatro filmes sintéticos, repletos de pesquisa formal e realizados com um apuro estético fora do comum.

O primeiro, Rota de Colisão (1999), rodou pelo mundo, participou da Quinzena dos Realizadores de Cannes e ganhou prêmios em festivais nacionais e internacionais. Já estava ali o cartão de visita de um diretor interessado em explorar as potências do ritmo, das texturas das imagens e do impacto sonoro. Um operário de vida correta (Jurandir Oliveira), um ladrão (Xande Alves) e um menino de rua (Silvio Guindane ainda garoto) têm seus caminhos cruzados a partir de um roubo e um jogo de bola de gude.

Filmado em ruas do Centro do Rio e do Morro da Conceição, o filme alterna três cadências e posturas de vida diferentes numa montagem rítmica fascinante. Não há uma linha de diálogo sequer, mas apenas a trilha percussiva de Paulo Brandão e Paulo Muylaert, responsáveis pela mesma função nos demais curtas de Roberval. A ficha técnica do filme exibe nomes talentosos que apenas começavam sua carreira: Eduardo Nunes, o montador Flavio Zettel (outro de que Roberval não se desgrudou mais), o diretor de fotografia Mauro Pinheiro Jr., Lula Carvalho como assistente de câmera, a produtora Izabella Faya, Tetê Mattos.

“Rota de Colisão”

Eu fiz uma ponta como o receptador de pedras preciosas que é roubado em plena Avenida Rio Branco. Felizmente o ladrão levou também a minha carreira de canastrão. Na época, eu e Roberval trabalhávamos juntos na programação de cinema e vídeo do Centro Cultural Banco do Brasil. Ele concluía o curso de Cinema na UFF, e Rota de Colisão foi sua prova de fogo. Não tenho dúvidas de que é um dos melhores curtas brasileiros dos anos 1990. Minha participação não chegou a aviltar sua excelência.

“Asfixia”

Cronologicamente, o segundo curta foi Asfixia (2004), exercício tenso de comédia terrorífica a respeito de medos urbanos. Um homem asmático (Claudio Mendes) e sua mulher paranoica (Márcia do Valle) acordam no meio da noite com alguém supostamente forçando a porta do apartamento. Embora seja esse o filme mais dialogado de Roberval, é novamente o desenho de som que mais impressiona – e aqui uso o verbo impressionar em vários sentidos. Ao contrário de Rota de Colisão, este é um huis-clos literalmente asfixiante, apesar das linhas de fuga do humor. O uso da luz (Mauro Pinheiro Jr. mais uma vez) é primoroso, embora requeira uma projeção bem calibrada.Em seguida Roberval criou Santas (2012), inspirado em Asas do Desejo, de Wim Wenders, e nos mitos de algumas santas católicas. Cinco mulheres realizam cinco pequenos milagres nos tempos atuais: consolação, salvação, reconforto, etc. Mais uma vez dispensando falas, Roberval narrou Santas em planos-sequência tributários do cinema estrutural. A bela fotografia é de Alex Araripe.

“Santas”

Por fim, Dia dos Pais (2014) se passa no labirinto de um cemitério, onde um homem (novamente Xande Alves) tem dificuldade em localizar o túmulo do pai e é ajudado por dois meninos. O estilo minimalista de som e imagem, com leves incrustações de cor sobre o preto e branco, sublinha a secura do lugar e estimula a curiosidade do espectador sobre a busca do personagem. Este parece ser um projeto bem pessoal do diretor, dedicado à memória de seu pai.

“Dia dos Pais”

A carreira cinematográfica de Roberval Duarte está por enquanto limitada a esses quatro curtas impecáveis. Ele continua a tratar o roteiro do seu primeiro longa, Crônicas da Cidade que eu Amo, que faz uma homenagem declarada ao filme em episódios de Carlos Hugo Christensen, Crônica da Cidade Amada. O projeto conta com apoio do festival Sundance, mas ainda não decolou nos mecanismos de financiamento do Brasil.

Isso só não é mais lamentável porque sabemos que Roberval tem se dedicado a outros trabalhos igualmente importantes. Além do CCBB, foi coordenador do Centro Técnico Audiovisual (CTAV) da Funarte, implantou o projeto da Programadora Brasil, atuou como parecerista da Ancine e do Ministério da Cultura, e como curador de filmes brasileiros do Festival de Huesca, na Espanha. No Rio, criou o Cineclube Ricamar, que deu novo fôlego à antiga sala de cinema de Copacabana.

Na área de música, à frente da Associação Cultural Mundo Brasil, criou os projetos Selo Instrumental e Selo Instrumental Brasil. As sete edições do Festival Selo Instrumental reuniram, em encontros inéditos, cerca de 70 grandes músicos brasileiros, entre os quais Paulo Moura, Azymuth, Wagner Tiso, Carlos Malta, João Donato, Mauro Senise e Guinga. Por conta disso, Roberval administra hoje um acervo fenomenal de performances e informações sobre a música instrumental brasileira. Na Rádio Roquete Pinto, produziu e apresentou a coluna Jazz Brasil – Conexão Latina e a série Mundo Brasil – Conexão Global, em parceria com produtores e artistas de vários países.

É curioso que, com tantas ligações com o campo musical, nenhum curta de Roberval faz uso da trilha sonora musical convencional, baseada em melodias. Sua preferência recai sobre a criação de pontuações rítmicas e atmosferas sonoras, sempre a cargo da dupla Brandão-Muylaert.

Seja como for, o fato é que Roberval faz falta no cinema. Seus curtas dão prova de uma vocação indisfarçável para o audiovisual. Para quem não conhece, a sessão de quarta-feira vai deixar isso bem visível e audível.

4 comentários sobre “Os curtas impecáveis de Roberval Duarte

Deixar mensagem para Roberto Gervitz Cancelar resposta