Memória persistente de um massacre

A FLOR DO BURITI

Nesse novo filme, o casal João Salaviza e Renée Nader Messora retorna a sua querida aldeia krahô no Tocantins e a alguns elementos já visitados no belo Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos. Agora o massacre perpetrado por fazendeiros em 1940, apenas mencionado naquele filme, ganha um esboço de reencenação. A chacina está na origem de um trauma tribal que mantém os krahô em estado de vigilância até hoje.

A Flor do Buriti (Crowrã, na língua krahô), pretende encapsular 80 anos de vida da aldeia de Pedra Branca numa série de vinhetas que oscilam entre o documentário e a ficção. Desde que instou o irmão a atirar uma flecha numa rês extraviada para que ela não destruísse as plantações da aldeia, a pequena Jotát tem sonhos perturbadores. Os tempos se confundem deliberadamente, visando talvez dar conta de uma cosmogonia própria dos indígenas.

A ficção serve aqui como canal de acesso a uma realidade documental. Assim é que os krahô se assumem como atores para encenar o enfrentamento de traficantes de animais silvestres e a resistência contra colonos que tentam invadir suas terras, assim como uma série de cenas domésticas. Daí que o júri da mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes atribuiu ao filme o prêmio Ensemble, destinado ao conjunto do elenco. O mérito desse trabalho é inegável.

Muito do território krahô no Tocantins já foi tomado pela pecuária e pelo plantio extensivo dos “cupê” (os não indígenas). Quando João e Renée filmavam por lá era o governo Bolsonaro, e duas expectativas cresciam na aldeia: o nascimento de uma criança e a viagem de alguns a Brasília para participarem de um protesto. Enquanto essas duas coisas não acontecem, os vemos em reuniões de organização política, no preparo da festa do Kêtuwajê ou simplesmente rememorando fatos e mantendo conversas na intimidade das famílias.

Como em Chuva é Cantoria…, toda a concepção de A Flor do Buriti foi compartilhada com os krahô. Isso garante um tom sereno e uma estrutura fragmentada, pouco afeita à narratividade branca. Mas não afasta a impressão de um certo déja vu em relação ao que discutem tantos outros filmes recentes sobre a problemática indígena. Apesar das imagens impregnantes da aldeia e das pessoas, o componente mágico não se estabelece para além da figuração de espíritos descolados dos corpos. A cronologia rarefeita deixa na sombra o episódio da formação da Guarda Rural Indígena durante a ditadura. Em Brasília, a participação dos protagonistas praticamente não se concretiza na tela.

No fim das contas, o filme chega a um impasse. A expressão indígena, mediada pela elaboração “cupê”, abre mão de sua essência e chega a uma mescla menos satisfatória. Vejamos como Eryk Rocha e os yanomami trataram disso em A Queda do Céu.

>> A Flor do Buriti está nos cinemas.

Um comentário sobre “Memória persistente de um massacre

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