Destaques da Ecofalante em São Paulo

“O Fogo Interior”

Em junho último foi no Rio de Janeiro. A partir de hoje (1° de agosto) começa a versão paulista da Mostra Ecofalante de Cinema 2024. Até 14/8, serão 122 filmes de 24 países que discutem questões socioambientais urgentes da atualidade. Totalmente gratuito, o evento acontece no Reserva Cultural, Circuito Spcine Lima Barreto (Centro Cultural São Paulo), Cine Satyros Bijou, Nave Coletiva, Circuito Spcine Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes e 15 unidades do Circuito Spcine localizadas nos CEUs.

Além da programação internacional, que apresenta títulos selecionadas para os festivais de Cannes, Berlim, Sundance, Roterdã, Locarno e Tribeca, a Mostra Histórica reúne obras clássicas de três cineastas mulheres latino-americanas: De Certa Maneira (1977), de Sara Gómez, Araya (1959), de Margot Benacerraf, e Amor, Mulheres e Flores (1984), de Marta Rodríguez e Jorge Silva, este último uma das atrações da mostra Cannes Classics do Festival de Cannes. Outro destaque é O Fogo Interior: Um Réquiem para Katia e Maurice Krafft, longa de Werner Herzog sobre o casal de vulcanólogos.

Na programação nacional, estão filmes dos diretores Wolney Oliveira, Vicente Ferraz, Graciela Guarani, Otávio Cury,  Tatiana Tofolli e Aurélio Michiles. Na nova Competição Territórios e Memória, estará uma seleção de 27 títulos, entre longas e curtas brasileiros, de 11 estados e do Distrito Federal.

A extensa programação e demais informações estão no site da mostra. E aqui o link para baixar o catálogo em PDF.

A emergência climática é o foco privilegiado do evento, mas a pauta é como sempre muito ampla. Eu já tive a oportunidade de ver alguns filmes, que comento a seguir.

Fabulações de e sobre indígenas

A Transformação de Canuto é filme de uma originalidade luminosa, em que realidade e mitologia dialogam admiravelmente. A partir de conversas com seu avô, um histórico defensor dos direitos de sua aldeia, o cineasta Mbyá-Guarani Ariel Kuaray Ortega se interessa por investigar a história de um certo Canuto, que teria se transformado em onça antes de morrer como um animal. Junto com o cineasta e antropólogo Ernesto de Carvalho, vai fazer um filme, mas não um documentário comum de entrevistas. Ele quer reencenar a vida de Canuto para que as pessoas não só saibam, mas sintam como foi que tudo aconteceu.

Os testes de câmera, a busca de objetos de cena, a apresentação do material bruto para a própria comunidade, a incorporação dos personagens pelo elenco e até a mudança do ator principal a meio caminho vão dando conta de como se processa a produção de um filme indígena. A criação artística não é totalmente separada da vida comum, mas se nutre dela. Daí que A Transformação de Canuto apareça, a um só tempo, como um pedaço da vida da aldeia, uma evocação da luta anticolonialista e uma lúdica recriação do imaginário mágico da tribo. Um grande filme, sem dúvida, que já saiu duplamente premiado no IDFA de Amsterdã como melhor filme e melhor contribuição artística da Mostra Envision.

Carlos Adriano leva adiante sua veia intelecto-subversiva com o novo curta O Materialismo Histórico da Flecha Contra o Relógio. Numa complexa construção visual e sonora, inspirada no conceito benjaminiano de história (a descontinuidade é a temporalidade dos oprimidos), Adriano estabelece uma rima entre o ato dos revolucionários parisienses de atirarem contra os relógios em 1830 e o dos indígenas brasileiros de lançarem flechas contra o relógio da Globo que contava os dias para as comemorações do “descobrimento” do Brasil em 2000. E ainda faz um paralelo entre a condição dos povos originários brasileiros e os palestinos atacados por Israel. As imagens de muitas origens, como sempre manipuladas à exaustão, disputam o tempo de tela com uma pletora de citações de Walter Benjamin, Pierre Reverdy e Michael Löwy.

Eis um cineasta-ensaísta que não se amofina diante da extensão de suas leituras e ideias. Eis um filme que pensa alto e art(e)icula signos de diferentes tempos, latitudes e gêneros para forjar sua densa arquitetura. Para se ter uma história dos oprimidos é preciso quebrar o contínuo da história dos opressores. Nesse sentido, Carlos Adriano é um estilhaçador.

Histórias de contato

O difícil tema do contato entre indígenas e não indígenas tem dois ilustres representantes na mostra: O Brasil Grande e os Índios Gigantes, de Aurélio Michiles, realizado sob os auspícios do Instituto Socioambiental em 1995, e o recente – mas ainda inédito comercialmente – O Contato, de Vicente Ferraz.

O Brasil Grande e os Índios Gigantes revê a história da aproximação entre os irmãos Villas Boas e os índios Panará (ou Krenakarore) no início dos anos 1970. Os dois indigenistas foram convocados diversas vezes pelo governo federal para contatar os chamados “índios gigantes” e assim facilitar o acesso para construção de estradas na Amazônia e no Mato Grosso. Os próprios Villas Boas contam essa saga, coadjuvados por Darcy Ribeiro, Sidney Possuelo e Apoena Meirelles, entre outros. O ex-ministro Roberto Campos também aparece criticando o megaprojeto das estradas.

A história tem ingredientes trágicos, como tantas vezes acontece depois desses primeiros contatos. Os Panará viraram mendigos à beira da estrada, adoeceram e morreram às centenas muito rapidamente. Foram transferidos para o Xingu, mas, em 1994, lutavam para retornar a terras pelo menos parecidas com as suas de origem. Michiles refaz essa odisseia com eloquentes cenas de arquivo e seu habitual conhecimento das questões amazônicas. Ali estava, talvez, uma semente da futura obra-prima Segredos do Putumayo.

Quem não puder ver O Brasil Grande e os Índios Gigantes em tela grande na mostra pode assisti-lo no Youtube.   

Por sua vez, O Contato penetra com habilidade num universo razoavelmente desconhecido pelo público geral: o município de São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, estado do Amazonas. A região abriga nada menos que 23 etnias, que falam 19 línguas, sendo três delas consideradas oficiais, junto com o português. Essa babel se reflete também em relações complexas entre as próprias etnias, como casamentos interétnicos e eventuais tensões de parte a parte.

O eixo da narrativa são duas viagens que por um breve momento se cruzam no rio [Vicente Ferraz me esclarece que a versão definitiva do filme contempla três viagens] . Uma professora da etnia Arapaço sai em direção a São Gabriel da Cachoeira para visitar a filha, que se encontra internada com uma depressão mórbida. No caminho, visita a missão religiosa onde estudou no passado. Outra família se desloca em direção à aldeia original da mãe, da etnia Hubda, levando o filho e o marido (um Baniwa) para conhecerem a avó materna depois de 12 anos morando longe.

Eis uma abordagem engenhosa de heranças culturais sendo ameaçadas e resistindo à saga dos contatos de todo tipo. Ainda pretendo escrever mais sobre esse belo filme quando de sua estreia comercial em 15 de agosto.

Comunidades em movimento social

Quem passa pela Rua do Ouvidor, no centro de São Paulo, não tem como ignorar a pulsação do número 63. Ali funciona há dez anos o Centro Cultural Ouvidor 63, a maior ocupação artística da América Latina. O documentário Ouvidor, de Matias Borgström, flagra momentos decisivos na história do Centro, desde a entrada dos primeiros ocupantes, em 2014, no edifício havia sete anos desocupado pela Secretaria de Cultura do estado. Quatro anos depois, o governo estadual fazia seguidas tentativas de corte de energia e reintegração de posse.

Foi em 2018 que a Ouvidor 63 ganhou um edital de patrocínio da Red Bull para sua segunda bienal de artes, realizada em um dos 13 andares do prédio, simultânea e criticamente à Bienal de São Paulo. O fato gerou dissidências internas e temores de que os “mundos possíveis” inventados pelos 120 artistas latino-americanos ali instalados fossem abastardados por uma multinacional.

O filme capta essas discussões e toda a vivacidade da ocupação com flashes sucintos de performances, reuniões, visitas de fiscais da defesa civil, de políticos e líderes de movimentos de moradia. A inserção de animações abstratas realça o colorido e a irreverência da arte produzida naquela utopia urbana tornada real.

A Ouvidor 63 se mantém independente dos próprios movimentos sociais e já conquistou status oficial de centro cultural. Ouvidor, o filme, é uma memória inestimável daqueles tempos de resistência.

Samuel e a Luz descreve as transformações sofridas pela aldeia caiçara de Ponta Negra, em Paraty, com a chegada da luz elétrica em 2017. Filme de observação delicada, com interferências explícitas mínimas, acompanha a vida de uma família de pescadores ao longo de seis anos, acompanhando o crescimento do caçula Samuel e as dinâmicas de seus pais e irmãos. É uma coprodução com a França, dirigida por Vinicius Gyrnis, e ganhou o prêmio de melhor documentário da competição Novos Diretores pelo júri oficial da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no ano passado.

Duas virtudes saltam aos olhos, além da fotografia belíssima de Pedro Cortese: a ausência de qualquer recurso explicativo, o que permite ao espectador uma experiência de percepção e imersão quase inteiramente visual; e o aproveitamento das sugestões de luz como elemento constitutivo do filme. De alguma forma, me trouxe à lembrança o contexto do clássico Arraial do Cabo (1960), de Paulo César Saraceni e Mário Carneiro.

Ao contrário do que diz o título de Não Existe Almoço Grátis, existe, sim. As quase 50 cozinhas solidárias do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, espalhadas pelo Brasil, fornecem diariamente refeições gratuitas para milhares de pessoas. O filme de Marcos Nepomuceno e Pedro Charbel “colou” em três cozinheiras do MTST na favela de Sol Nascente de Brasília enquanto elas preparavam comida para centenas de brasileiros e brasileiras que chegavam à capital para a posse do Lula em janeiro de 2023.

Socorro, Jurailde e Bizza têm orgulho de tudo o que o movimento lhes trouxe de auto-estima, consciência política e senso de comunidade. Em meio à preparação dos panelões de arroz, frango assado, feijão tropeiro e legumes, elas contam de suas vidas pregressas e dos sonhos de futuro. Jurailde conhece o bem que faz ao espírito enfiar as mãos na terra. Socorro está ansiosa por corrigir a bobagem que fez ao votar no fascistão em 2018. Bizza se desmancha ao mostrar a foto dos três netos. A profunda humanidade dessas três mulheres soa como um resumo do que o Brasil vivia naquela virada de ano: solidariedade, esperança e alegria. De preferência, com o prato cheio.

Chamo atenção, ainda, para o esforço gigantesco de documentação do siciliano-americano Will Parrinello em Água é Vida! (Water for Life). Desde 2009, de maneira independente, Parrinello e seu diretor de fotografia Vicente Franco vinham fazendo perfis curtos dos ganhadores latino-americanos do Goldman Environmental Prize, uma espécie de Prêmio Nobel do ambientalismo. Três desses líderes acabaram se tornando os protagonistas do longa-metragem, construído, afinal, ao longo de 12 anos.

Alberto Curamil é um cacique da etnia mapuche que lidera a luta de seu povo contra a instalação de uma hidrelétrica em prejuízo das águas de seu território. A água é um recurso raro e precioso no Chile, onde chega a ser negociada na Bolsa de Valores. Francisco Pineda é um agricultor de El Savador que fundou uma comissão ambiental para exigir a paralisação de uma multinacional de extração de ouro que roubava e poluía as águas do rio próximo a sua comunidade. Berta Cáceres, do povo Lenca de Honduras, era uma defensora dos direitos indígenas em luta contra a construção de uma represa danosa ao meio-ambiente.

Cada um desses três guerreiros sofreu ameaças e viu companheiros serem mortos a mando de grandes empresários em conluio com governantes corruptos. O filme os acompanha com uma persistência admirável, dando a palavra também aos pérfidos argumentos do “outro lado”. Em cada caso, Parrinello remonta aos antecedentes históricos de ditaduras, golpes de estado e pelejas populares, num cuidadoso trabalho de contextualização. O roteiro habilidoso conduz a três exemplos comoventes de vitória, ainda que a custo amargo e sem que a luta deixasse de continuar.

Tenho textos publicados sobre outros filmes da programação. Convido vocês à leitura:

Black Rio! Black Power!, de Emilio Domingos
Memórias da Chuva, de Wolney Oliveira
Favela do Papa, de Marco Antonio Pereira 

2 comentários sobre “Destaques da Ecofalante em São Paulo

  1. Pingback: Balanço e favoritos de 2024 | carmattos

  2. Pingback: O horror da ocupação israelense | carmattos

Deixe um comentário