Seis personagens em busca de algumas mentiras

171

A dedicatória a Eduardo Coutinho é mais que justificável. O mestre de Jogo de Cena estabeleceu um paradigma para o documentário que joga com a crença do espectador e com a suposta verdade do discurso em primeira pessoa. Mas Rodrigo Siqueira é, ele próprio, um cultor desse lusco-fusco entre veracidade e fingimento. Terra Deu, Terra Come e Orestes dançavam nessa fronteira com diferentes coreografias.

Em 171, Siqueira foi buscar seis especialistas em impostura. Todos estavam encarcerados em prisões paulistas por estelionato, tráfico de drogas ou assalto. Em comum, o fato de serem considerados verdadeiros “171”, ou seja, trapaceiros que não merecem confiança. O artigo 171 do Código Penal brasileiro tipifica o estelionato, ou seja, o ato de enganar pessoas para obter benefícios próprios.

Os seis personagens se engajaram no projeto com suas qualidades de atores e atrizes no mundo do crime. São ótimos narradores, virtude habitualmente usada em suas falcatruas. Cada um relata para a câmera suas habilidades e seu currículo na bandidagem, mas cabe ao espectador intuir o que pode ser verdade ou deslavada mentira. Será aquele “cineasta” um pastor ou um golpista da especulação financeira? E aquela ex-traficante de drogas terá mesmo a vivência campestre que a leva às lágrimas? O que dizer do falso padre que aparece fazendo um casamento ou da padeira que também é dentista e ao mesmo tempo é sua paciente? Terá o ator embusteiro sido de fato um ator no passado? Será aquela pessoa um membro da equipe ou mais um personagem?

Eles e elas deslizam entre o depoimento sincero e a encenação, às vezes sem que percebamos bem onde estava a fronteira. Com isso, Rodrigo Siqueira nos apronta um filme que é também “171”. Um filme que a todo momento pode estar nos enganando ao aliar-se aos seus mentirosos. A montagem fragmentada rodizia os personagens e suas máscaras de tal modo que nunca sabemos onde estaremos no próximo corte. Ficamos num terreno pantanoso entre as camadas, o que é tão incerto quanto lúdico.

Outro mérito de 171 é sua própria realização em condições muito restritas por força da segurança nos presídios. Tudo foi filmado em espaços e horários designados pela diretoria, sem que nada do “sistema” pudesse aparecer. É notável que essas limitações não comprometam a fluência do filme, no que muito ajudou a estrutura adotada.

A encenação de uma cena da peça Seis Personagens à Procura de um Autor, de Luigi Pirandello, faz convergirem alguns personagens, acrescentando uma demão de metalinguagem que não chega a se concretizar. Melhor que isso foi o convite a que os presidiários contribuíssem com sugestões de cenas, tornando-se um pouco mais coautores do que normalmente já são os participantes de um documentário. Eles claramente se divertiam com essa dobra sobre suas personalidades. Afinal, como diz um deles, mentir é fácil. E, como dizem vários, dá prazer.

171 nos dá o prazer de navegar nas ondas ardilosas e divertidas de seis pseudo-profissionais da mentira. Para seu diretor, é um passo além na exploração do falso no documentário.

>> 171 está nos cinemas.

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