Corpos em transe e em risco

Notas sobre o documentário CORPO PRESENTE e o thriller de terror A HERANÇA

O corpo como império do eu

Corpo Presente veicula alguns traços muito em voga nos documentários brasileiros contemporâneos. Especialmente naqueles marcados pelo pensamento acadêmico e seu entorno. O primeiro deles é a inserção de performances corporais como parte do arrazoado ensaístico. Nesse caso, isso deixa de ser uma inserção para ser a própria matéria do trabalho. Trata-se de um filme-ensaio sobre o corpo como instância de onde tudo nasce e para onde tudo converge.

Estamos, portanto, no reino da individualidade mais irredutível. Uma voz feminina desencarnada desenrola um discurso em primeira pessoa sobre auto-imagem, alteridade, ancestralidade, desejo, violência, catarse e outros quetais. O “eu” impera sobre tudo o mais, mesmo quando se fala do outro.

O filme se organiza em cinco capítulos (A Pele, O Outro, A Natureza, Marcas e Expansão). A partir da criação conjunta com alguns artistas performáticos, o diretor Leonardo Barcelos, um dos fundadores do grupo mineiro Teia e aqui também responsável pela montagem, faz desfilar imagens sofisticadas, muitas delas inquietantes. Os corpos das performers, com destaque para o de Ludmilla Ramalho, atuam numa grande variedade de cenários, expostos a fenômenos da Natureza ou afetados pela tecnologia.

Da simples elucubração sobre o corpo individualizado passa-se rapidamente pela vilipendiação dos corpos negros para chegar à afirmação dos “corpos livres” (transgêneros e não binários). O viés identitário se estabelece, bem de acordo com a atual hegemonia das micropolíticas em detrimento da luta de classes. Entre os corpos narcísicos não há lugar para a política geral. Eis uma discussão que vem ocupando corações e mentes já há algum tempo.

Falta comentar o outro traço mui momentoso presente no filme, qual seja o recurso a um vocabulário jargão da academia, que reflete justamente o estado de coisas referido no parágrafo anterior. A beleza e a força eventual das imagens e da construção sonora de O Grivo são frequentemente contaminadas pelas ruminações verbais da narradora, que acumulam clichês como “lugar”, “potência”, “subjetividade”, “atravessar”, “acessar”, “conectar-se”, “habitar”, “estar no mundo”, e por aí afora. Ajuntem-se ainda as canjas de intelectuais como Suely Rolnik e Ailton Krenak, e da deputada Erika Hilton, sempe fora do quadro. Isso confere a Corpo Presente um ar de exposição acadêmica aborrecida, o que a consultoria artística do veterano Eder Santos não serviu para evitar.

>> Corpo Presente está nos cinemas. 

Terror matriarcal

Ainda está em cartaz um filme brasileiro que pode agradar aos fãs mais apaixonados do terror. Não é o meu caso, mas reconheço em A Herança certa habilidade em manusear os tropos do gênero: a casa mal assombrada com seus cômodos misteriosos e portas que rangem, o porão mal iluminado e cheio de teias de aranha, a criada muda, os símbolos de uma possível seita, os blecautes, os olhares sinistros… e com o acréscimo de uma variante tenebrosa do cordão umbilical.

A trama coescrita e dirigida por João Cândido Zacharias, com produção de Tatiana Leite (de Malu), envolve Thomas (Diego Montez), rapaz que chega com o namorado Beni (Yohan Levy) para conhecer a casa da avó, de que agora é o herdeiro. Ele nada sabia daquela propriedade isolada no campo, onde é recebido por duas tias estranhamente solícitas, interpretadas com gosto macabro por Analu Prestes e Cristina Pereira. Beni é o primeiro a estranhar o ambiente, mas Thomas se deixa seduzir (ou abduzir) pelo apelo da ancestralidade.

Eu soube que o filme tem sido atacado por homofóbicos, já que não dissimula o namoro entre os dois rapazes. Ao contrário, faz disso um contraponto com a atmosfera funesta que se adensa gradativamente numa chave de terror matriarcal. Tristes tempos os que vivemos. Embora não seja um marco no horror nacional, A Herança tem qualidades de realização, entre as quais uma trilha sonora possante do prolífico Bernardo Uzeda.

>> A Herança está nos cinemas.

 

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