Realismo pós-socialista

NÃO ESPERE MUITO DO FIM DO MUNDO no streaming

A Romênia de Radu Jude é uma espécie de laboratório do que chamo aqui de realismo pós-socialista. O país trocou a opressão de um regime comunista retrógrado por um neoliberalismo predatório. Como bem destacou Marco Antonio Barbosa em artigo sobre o filme, privatizações e desregulamentações do mercado financeiro fizeram do país o principal destino de investimentos estrangeiros diretos na Europa Central. Para os trabalhadores restaram a precarização e a plataformização.

Como no premiado Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental, Radu Jude usa e abusa da caricatura para criticar o destino de seus conterrâneos. A atriz e influenciadora digital Ilinca Manolache solta a franga no papel de Angela, uma assistente de produção que dirige extensivamente por Bucareste para gravar testes com personagens para um documentário sobre segurança no trabalho encomendado por uma multinacional austríaca. Seus deslocamentos ao volante, ao som de rap romeno e turbofolk, revelam uma cidade feia e hostil, com agressões verbais no trânsito e abundantes cartazes de “Propriedade Privada”. De vez em quando, ela grava comentários rápidos, vulgares e ultrajantes no Tik-Tok, usando um filtro de rosto não binário. Esse personagem Bobita tem sido encarnado por Ilinca na rede desde 2021.

Cada etapa do périplo de Angela, em 16mm preto e branco, é espelhado por cenas coloridas de Angela merge mai departe (Angela segue em frente), filme da era Ceausescu sobre o dia a dia de outra Angela, uma taxista na Bucareste de 1981. As duas eras não estão em contraste, nem em diálogo, mas apenas como um comentário sobre a continuidade de certos padrões. Dorina Lazar, a atriz do filme antigo, retoma seu papel quatro décadas depois.

Em 163 minutos de road movie urbano, referências ao cinema e à literatura, Não Espere Muito do Fim do Mundo (Nu Aștepta Prea Mult de la Sfârșitul Lumii) quer falar de muitas coisas. Machismo, guerra da Ucrânia, capitalismo tardio, exploração trabalhista, servidão internacional, especulação imobiliária, mortes na estrada, ódio à crítica de cinema…

Mas, afinal, um tema bastante contemporâneo se sobressai, qual seja a produção de conteúdo fake. Angela entrevista pessoas que sofreram graves acidentes de trabalho. Os escolhidos participarão do documentário em troca de um pequeno cachê, que é precioso para eles e suas famílias. Os 40 minutos finais do filme são preenchidos pelo plano fixo da gravação oficial de um desses trabalhadores, que deverá ajustar seu depoimento aos interesses da empresa empregadora.

A multiplicidade de assuntos, tratamentos, citações e ironias usados por Radu Jude não deixa de ser uma forma de realismo. O estado de coisas da Romênia está plasmado por um filtro anárquico e sarcástico. O pós-socialismo conferiu ao país um lugar de subalternidade, que um filme como esse pretende exorcisar por catarse. Pode ser às vezes exasperante para o espectador, mas é também agudo como deve ser.

>>  Não Espere Muito do Fim do Mundo está na plataforma Mubi.

4 comentários sobre “Realismo pós-socialista

  1. Grato, Carlos Alberto, por sua análise. Fui um dos que se impressionou com alguns dos achados do diretor, um desses foi a passagem relâmpago do entregador uber dentro do cemitério. Metáfora genial. Abraços.

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