Uma noite para não esquecer

MEU BOLO FAVORITO

Por trás dessa história ultrarromântica de um homem e uma mulher que redescobrem o amor na terceira idade está um filme altamente subversivo para os padrões repressores do cinema iraniano. Meu Bolo Favorito (Keyke mahboobe man) pode não ser tão frontalmente político como A Semente do Fruto Sagrado, mas desafia diversos tabus do cotidiano de gente comum no Irã.

Mahin (Lily Farhadpour) é uma viúva de 70 anos que vive sozinha com um coração que clama por companhia. A filha mora na Europa e não tem muito tempo para gastar com ela em videoconferências. Com suas poucas amigas reúne-se de quando em quando. Passa o tempo suspirando com telenovelas turcas. Em casa, a vemos sem o hijab (véu islâmico), o que já fere um preceito da censura. Mesmo que, na realidade, as mulheres usem os cabelos descobertos no ambiente estritamente doméstico, a lei proíbe que assim apareçam na tela, pois os filmes são considerados exposição externa.

A vida de Mahin parece estar a ponto de mudar no dia em que, num restaurante de aposentados, ela se interessa por um taxista de sua idade que também leva uma vida solitária. Sua atitude proativa na aproximação com Faramarz (Esmaeil Mehrabi) agride a convenção segundo a qual as mulheres devem ser passivas nas relações amorosas. Apesar do seu jeito modesto, Mahin tem a veia das iranianas que hoje enfrentam as discriminações da teocracia. Quando testemunha uma moça sendo detida pela Polícia da Moralidade por não portar apropriadamente o hijab, ela se solidariza e confronta os policiais.

O encontro dessas duas almas desabitadas durante uma noite chuvosa nos diverte e comove em igual medida. Os intérpretes são simplesmente fabulosos. Com aquele naturalismo extraordinário típico dos cineastas iranianos e um senso perfeito de timing, o casal de diretores Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha (do excelente O Perdão) descreve a lenta quebra de gelo entre os dois e, ao mesmo tempo, revela uma intimidade proscrita das representações da vida no Irã. Mahin e Faramarz dançam, tomam banho juntos, bebem vinho fabricado clandestinamente em casa (motivo de prisão no país) e trocam ideias sobre a intolerância do regime.

É impossível não sentir o coração aquecido pela sintonia deles e pelo que se anuncia para o resto de suas vidas. Não saberemos como terá sido depois daquela noite, uma vez que o filme nos reserva uma surpresa avassaladora para os minutos finais. Mas, em toda a sua simplicidade formal, Meu Bolo Favorito toca em emoções fortes e contrastantes. Mereceu os prêmios da crítica e do júri ecumênico do Festival de Berlim de 2024. Seus diretores, contudo, estão sob custódia policial por terem realizado o que o estado teocrático considera “um filme vulgar” que promove a prostituição e a libertinagem.

>> Meu Bolo Favorito está nos cinemas. 

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