Notas sobre QUATRO PAREDES, SUGARCANE: SOMBRAS DE UM COLÉGIO INTERNO e PORCELAIN WAR, três indicados ao Oscar de documentário longa-metragem
>> Leia também sobre os dois outros indicados ao Oscar na categoria: No Other Land (estreia prevista para 6/3 com o título de Sem Chão) e Trilha Sonora para um Golpe de Estado.
Watashi mo
O fato: em 2015, aos 25 anos, a jornalista japonesa Shiori Itó marcou um jantar com Noriyuki Yamaguchi, figurão da mídia e biógrafo do então Primeiro Ministro Shinzo Abe. Queria que ele a ajudasse a conseguir um posto em Washington. Ao final do encontro, depois de beber alguma coisa suspeita, aceitou carona num táxi e foi arrastada por Yamaguchi para um quarto de hotel, onde foi estuprada e machucada.
A reação: dois anos depois, contra os conselhos dos pais e de amigos, Shiori resolveu tornar público o assunto e abrir um processo contra Yamaguchi. Por conta disso, seria difamada e vilanizada por vozes conservadoras, enquanto era apoiada por jornalistas e mulheres de vários setores. O caso se tornou um marco no contexto do #metoo japonês (watashi mo) ao expor falhas graves no sistema judiciário do país no que tange à violência sexual. Um investigador que, depois de muita relutância, tomou o partido de Shiori foi afastado do processo. Um chefe de polícia manobrou para evitar a prisão de Yamaguchi. Consta que somente 4% das mulheres violentadas fazem a denúncia no Japão.
O filme: desde 2017 Shiori registrou em câmeras e gravadores de áudio o andamento de sua luta para incriminar o agressor. Ao mesmo tempo, descreveu essa jornada no livro Black Box, lançado em 2018. Quatro Paredes (Black Box Diaries), o documentário, abrange os desabafos de Shiori diante de sua câmera, não raro entre lágrimas, e suas interações com advogados, amigas e com a mídia. Muitas vezes recorre a câmera escondida ou áudios cobertos por imagens aleatórias.
O resultado, se por um lado é fiel aos sentimentos da moça – incluindo aí seu misto de fragilidade e resiliência –, por outro ressente-se de muitas lacunas e insuficiências de informação. Por mais que simpatizemos com Shiori e sua causa, o filme não tem a força suficiente para nos engajar além do mero testemunho. Faltou um talento mais experiente que fornecesse coesão e senso narrativo a um trabalho que avança aos trancos e acaba tendo seu impacto minimizado.
A indicação ao Oscar de documentário soa como uma superestima devido não só ao tema, mas também à empatia que Shiori Itó, particularmente, pode ter inspirado nos votantes.
>> Quatro Paredes estreia no streaming em 6 de março.
Ecos de um genocídio
Esse é o tipo de documentário que veicula uma denúncia importante, mas o faz de maneira tão formulaica que reduz o seu próprio impacto. É dirigido a quatro mãos pelo cineasta e ativista indígena Julian Brave Noisecat e a documentarista e jornalista investigativa canadense Emily Kassie. Julian é filho de um homem que, ainda bebê, sobreviveu à morte por incineração numa escola católica na reserva indígena canadense Sugarcane.
O colégio interno da Missão St. Joseph foi uma das centenas de instituições criadas nos EUA e no Canadá para “resolver o problema indígena”. Crianças nativas eram encaminhadas para essas escolas a fim de serem educadas para a sociedade. Mas sempre houve relatos de castigos torturantes, açoites, abusos sexuais e mortes em fugas mal sucedidas. O filme acompanha algumas tentativas de investigação recentes, quando se descobriu que bebês nascidos da relação entre padres e meninas costumavam ser incinerados. A descoberta de túmulos subterrâneos foi o corolário de um verdadeiro genocídio.
Na verdade, Sugarcane simula um falso presente para resenhar descobertas do passado recente. O modelo, típico das produções abraçadas pela National Geographic, envolve sutis encenações, como o achado, claramente fake, de uma sepultura por um dos ex-alunos e vítima sexual da escola. Esse homem, Rick Gilbert, protagoniza um dos poucos momentos de abalo legítimo do filme. Durante viagem à Itália para uma audiência com o Papa Francisco – quando este pede perdão pelos abusos dos padres – Rick confronta um diretor da congregação e afirma que o pedido de perdão é só o começo. O que importa é agir.
O documentário toca a complexidade do caso ao incorporar críticas à própria comunidade indígena pela inércia diante dos relatos das crianças e mesmo pelo abandono de filhos que acabavam sendo absorvidos pela escola dos missionários. Este é um assunto sobre o qual nem todos querem falar. Julian, codiretor e personagem, mantém conversas difíceis com o pai, num exemplo dos traumas que ecoam na consciência da reserva.
Se não fosse roteirizado em demasia, hiperconstruído, morno na abordagem e menos afeito ao estilo televisivo, Sugarcane seria bem mais efetivo. Em compensação, talvez não tivesse ganho o prêmio de melhor documentário estadunidense em Sundance e indicação ao Oscar, nem agradado tanto ao consumo do gênero nos EUA.
>> Sugarcane: Sombras de um Colégio Interno está na plataforma Disney+
Ucrânia, entre belezas e bombas
Uma tomada de drone próxima ao final de Porcelain War mostra um belo campo de girassóis ao lado de um cemitério. Essa dualidade perpassa todo o documentário de Brendan Bellomo e Slava Leontyev: a arte como resistência espiritual e os horrores da guerra na Ucrânia. Slava é um dos diretores e também um dos personagens. Ele e sua mulher criam pequenas figuras de porcelana, que Anya decora com pinturas meticulosas, algumas das quais ganham vida em delicados trechos de animação.
Mas a realidade da guerra obriga Slava a oferecer seus préstimos como treinador de tiro para civis engajados na frente de batalha – esta uma das faces mais perversas daquele conflito. Seu amigo Andrey teve que largar a pintura para servir numa pequena unidade de combate na cidade de Kharkiv, mas, sempre que pode, pega uma câmera para filmar a vida silvestre.
Grande parte do material mostrado no filme foi gravado por Slava e Andrey. Alternam-se, portanto, imagens pastorais do campo ucraniano, do cachorrinho fofo e das graciosas peças de cerâmica com cenas de treinamento militar e refregas bélicas. Em meio a uma plantação de cogumelos pode estar uma mina terrestre pronta para explodir. De um lado, o soft focus das coisas belas; de outro, o hardcore da conflagração. As reflexões um tanto genéricas do trio sobre guerra, armas, patriotismo e o papel da arte em meio à barbárie, assim como a bonita trilha musical da banda Dakhabrakha, só são interrompidas pelo ruído dos bombardeios e a tensão pela espera do próximo míssil.
Porcelain War é um filme de produção estadunidense que se coloca inteiramente partidário da Ucrânia. Venceu a competição de documentários em Sundance e ganhou indicação ao Oscar da categoria. Absorve sem qualquer nuance o ponto de vista dos personagens, para quem os russos são simplesmente o inimigo, o Mal. Daí que, também acriticamente, demore-se ao mostrar planos aéreos de bombas atingindo alvos onde a presença russa é detectada. Nada muito diferente do que víamos na guerra do Iraque, quando as bombas eram estadunidenses e os alvos, iraquianos.
Uma longa sequência de ação, com uso de drones e câmeras corporais, nos leva para dentro de uma perigosa investida dos soldados na cidade de Bakhmut. Nesse e em outros momentos, tangencia-se uma glorificação da força militar quando em defesa de valores como pátria e liberdade. Mas Slava parece não ter dúvidas quanto ao teor trágico da resistência ucraniana. Reconhece que estão na luta apenas para reduzir perdas. “A Ucrânia é como a porcelana”, ele diz. “É fácil de quebrar, mas difícil de destruir”. O recente encontro de Zelensky com Trump na Casa Branca deixou clara a fragilidade dessa porcelana.
>> Porcelain War não tem previsão de estreia no Brasil.
>> Leia também sobre os dois outros indicados ao Oscar de documentário: No Other Land (estreia prevista para 6/3 com o título de Sem Chão) e Trilha Sonora para um Golpe de Estado.




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