Carvão em chama fria

PEQUENAS COISAS COMO ESTAS

Numa pequena e cinzenta cidade da Irlanda em 1995, o fornecimento de carvão ainda era essencial para garantir o aquecimento das pessoas. Daí a importância do trabalho de Bill Furlong (Cillian Murphy) e sua empresa miúda. O convento local era um de seus clientes. Bill era um homem generoso e taciturno que não poderia ignorar a miséria de parte dos moradores, nem a cena que presencia sem querer: uma mãe forçando a filha a entrar no portão do convento.

Ali funcionava uma das Lavanderias Magdalene, instituição religiosa real que reeducava moças desencaminhadas, prostitutas ou grávidas solteiras. Espalhadas por três continentes, as Lavanderias submetiam as internas a trabalho árduo análogo à escravidão. Na Irlanda, duraram até os anos 1990.

Numa de suas entregas, próximo ao Natal, Bill se depara com uma jovem grávida presa no depósito de carvão. Sua compaixão vai colocá-lo em confronto com as freiras e com a opinião pública, que preferia fazer ouvidos moucos perante o poder da Igreja na cidadezinha.

Se Bill era já um pai e marido distante, e um morador de pouca vivência social, a descoberta o torna ainda mais inacessível. Não só para os que com ele convivem, mas também para nós, espectadores. A performance interiorizada de Cillian Murphy cria uma barreira de opacidade que eu, particularmente, não consegui transpor. Uma série de flashbacks de sua infância, num Natal remoto, pretende evidenciar sua carência e o valor que ele atribui ao acolhimento de quem sofre. Ainda mais porque a moça maltratada pelas freiras tem o mesmo nome de sua mãe, Sarah.

Pequenas Coisas como Estas (Small Things Like These) é um filme lento (arrastado mesmo), soturno e retraído demais perante assunto tão grave. A presença da Pavana para uma Criança Morta, de Ravel, sugere um subtexto mórbido que o diretor Tim Meliants não parecia interessado em sustentar. O realismo kitchen sink, característico do cinema britânico dos anos 1950, remete tudo ao nível mais prosaico. A abordagem da Lavanderia pela perspectiva de alguém de fora também resfria o tema, que acaba ficando um tanto à sombra.

De qualquer forma, há que registrar a carga recente do cinema na denúncia dos abusos impetrados pela Igreja católica sobre crianças e jovens. Um dos indicados ao Oscar de documentário, Sugarcane – Sombras de um Colégio Interno, trata justamente disso.

>> Pequenas Coisas como Estas está nos cinemas.

2 comentários sobre “Carvão em chama fria

  1. Salvo engano, esse tema já havia sido tratado em “Em Nome de Deus”, do Peter Mullan, que ganhou o Leão de Ouro em Veneza há alguns anos.

    Também não curti muito o filme do Cillian Murphy, que fica num meio termo entre a denúncia social e as angústias do protagonista que parecem derivadas da sua infância.

    O filme foi baseado num romance da Claire Keegan, quem também escreveu “A Menina Silenciosa”, que foi adaptado recentemente num filme irlandês que chegou a ser indicado ao Oscar de filme internacional.

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