Um encontro para além do divã

VIRGÍNIA E ADELAIDE

Assim como já desenterrou para o cinema a história de uma poeta e tradutora no belíssimo Quem é Primavera das Neves, Jorge Furtado nos traz agora a figura de Virgínia Leone Bicudo (1910-2003), a primeira psicanalista brasileira. De maneira quase improvável para a época, anos 1940 a 1960, Virgínia conseguiu se impor no ramo mesmo sem ter formação em Medicina, nem a pele branca que se esperava de alguém naquele ofício.

Virgínia e Adelaide é codirigido por Yasmin Thayná, cineasta negra consagrada com o curta Kbela, poderoso manifesto antirracista e antimachista. Ela tem lugar de fala para retratar essa pioneira que começa como paciente para se tornar depois terapeuta. Neta de um escravizado e filha de uma imigrante italiana, a professora Virgínia tinha dificuldade em se aceitar como mulher negra. Por isso, na São Paulo de 1937, procurou a psicanalista judia alemã Adelheid Lucy Koch (Adelaide), então recém-imigrada para o Brasil em fuga do nazismo.

O encontro das duas mulheres propicia uma curiosa identificação pela condição comum de perseguidas, uma pelo racismo, outra pelo antissemitismo. A relação profissional evoluiu para uma parceria e uma grande amizade. O filme constrói esse encontro por meio de consultas/diálogos questionadores de ambas as partes, que vão forjando um laço de afeto e de trocas recíprocas. Até mesmo os paralelismos de roupas e adereços pessoais servem a esse intuito.

É um filme de câmara, concentrado apenas nas duas personagens, vividas com muita propriedade por Gabriela Corrêa (Virgínia) e Sophie Charlotte (Adelaide). Furtado e Thainá arriscam-se numa encenação bastante posada, pouco naturalista, com as atrizes sempre muito bem vestidas, maquiadas e penteadas, quase como se estivessem numa vitrine. Os diálogos soam um tanto “atualizados” para o momento de hoje, inclusive trocando a expressão “escravos” usada na época por “escravizados”, como manda a cartilha do politicamente correto atual.

A narrativa causa estranhamento ao alternar as conversas no divã com explanações sobre a situação política da época, num formato que mal disfarça a intenção didática. O Estado Novo e o nazismo formam o pano de fundo das trajetórias incomuns de Virgínia e Adelaide.

Apesar de um certo artificialismo, certamente buscado pelo diretor e a diretora, o filme recria, com liberdade ficcional, um capítulo importante da psicanálise no Brasil. Vale como um estímulo a que conheçamos melhor a história de uma mulher que deixou escritos importantes e levou Freud ao rádio brasileiro pela primeira vez.

>> Virgínia e Adelaide está nos cinemas.  

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