UM OUTRO FRANCISCO
Desde o surgimento dos smartphones com câmera, a fotografia se tornou uma prática popular e se estendeu para diversos ramos da vida cotidiana. Um exemplo inusitado se dá nas festas religiosas, quando o hábito de fotografar e fotografar-se ganhou foros de devoção. As fotos ocuparam os lugares de souvenir, ex-votos e prova da presença nos rituais.
Esse contexto já seria bastante para gerar um documentário interessante naquele que é considerado o segundo maior evento franciscano do mundo, a festa anual de São Francisco das Chagas, na cidade de Canindé, sertão cearense. Mas a documentarista cubano-brasileira Margarita Hernández (do excelente Che, Memórias de um Ano Secreto) deu um salto de percepção e foi registrar a celebração pela perspectiva de dois fotógrafos italianos. Dario de Dominicis já vive no Rio de Janeiro há vários anos. Giorgio Negro veio da Itália em férias. Juntos, eles circularam pela festa e interagiram com os locais. O que o filme captou foi particularmente interessante.
Antes de tudo, a relação entre a fotografia artística, que explora o inusitado e os esboços de narratividade, e os retratos populares, mais interessados na clareza e na funcionalidade da imagem. Num tempo em que todo mundo é fotógrafo, ainda resistem os profissionais que vivem da fé alheia, retratando os romeiros diante da basílica ou da estátua de São Francisco que se ergue com seus 30 metros sobre a cidade. As selfies e fotos de família predominam, assim como as imagens de feridos e doentes a preencherem o painel de ex-votos.
A cozinheira que gostaria de sair pelo mundo fotografando, o romeiro que parabeniza o fotógrafo por tê-lo clicado em sua peregrinação, os diversos populares que comentam ou mesmo criticam as fotos de Dario e Giorgio são alguns dos personagens deliciosos que passam pelo filme. Entre fotógrafos e fotografados, o documentário revela um panorama fascinante da vida sertaneja em ocasião especial. Um frade brasileiro residente em Assis, a terra de San Franceco, imagina que nada daquilo seria possível na Itália.
Sem pretender ser acadêmico ou didático, Um Outro Francisco bordeja assuntos mais graves como a ética fotográfica, a eventual invasão de privacidade das pessoas, o desejo de exposição, a recepção crítica da fotografia autoral e o olhar estrangeiro. Acima de tudo, é um filme saboroso de se ver e ouvir. Concluído em 2022, imagino que está tendo a oportunidade de estrear agora em função da perda recente do Papa Francisco. Se foi assim, é mais um bem que Bergoglio nos proporcionou.
>> Um Outro Francisco está nos cinemas.


Gostaria de poder assistir… Saudades Sylvie