Da Idade Média ao 8 de janeiro

APOCALIPSE NOS TRÓPICOS

Logo no início do filme há uma cena de grande ironia, mas muito significativa. O deputado Cabo Daciolo entrega uma Bíblia a Petra Costa e garante: “Aqui está a verdade”. Petra aceita, leve sorriso nos lábios. Mais adiante, ela dirá que estudou a Bíblia, talvez com atenção especial ao Livro do Apocalipse, que fala de um Deus cheio de ira, armado para vencer a Besta do Mal.

Apocalipse nos Trópicos é uma tentativa de compreender, histórica e miticamente, a ascensão dos evangélicos no Brasil tanto em número de fiéis, como em poder político. Para isso, Petra segue o mandamento fundamental do bom documentário: escolha um personagem e veja o mundo através dele.

No caso, o pastor Silas Malafaia, com sua retórica cheia de convicções, é o canal de acesso à lógica divisiva e grosseira que se opõe ao pensamento de esquerda e às ideias progressistas. Malafaia prega em nome de um Jesus que “virou a mesa” e brada contra o “maxismo cultural” (assim mesmo, sem o “r” na sua pronúncia). O advento do bolsonarismo e sua resiliência até hoje, assim como o crescimento da bancada evangélica no Congresso Nacional, são vistos, então, por intermédio desse homem e de sua associação com Jair Bolsonaro.

Compreender, para Petra e seus inúmeros colaboradores nesse filme, é retroceder às origens de um movimento que midiatizou a religião evangélica e passou a interferir na política. O pastor estadunidense Billy Graham, já nos anos 1960, inaugurava essa conexão. Entre os aspectos menos conhecidos daquela época, desenterrados por Apocalipse nos Trópicos, estão os “cafés da manhã de oração”, que reuniam líderes e lobistas evangélicos com presidentes e foram importados dos EUA para o Brasil, assim como as aulas de inglês para deputados brasileiros visando a formação de líderes cristãos e anticomunistas.

Em seis capítulos, quatro dos quais têm títulos relacionados à religião, o documentário cobre os principais eventos políticos entre 2016 e 2023, sempre guiado pela oratória religiosa de políticos e as manifestações de fervor de populares contagiados pela “palavra de Deus”. Há lugar também para a capitulação de Lula à busca direta do eleitorado evangélico. “O que levou o socialismo ao fracasso foi a negação da religião”, sustenta ele para a câmera de Petra.

Compreender, aqui, não é aceitar ou concordar. Petra editorializa o filme com suas características intervenções orais, embora não tanto calcadas na primeira pessoa como em Democracia em Vertigem. Verbaliza sobre a distância que a separa do seu objeto e deixa sua opinião claramente expressa sobre os destinos de Brasília e do Brasil sob ameaça de um hiperconservadorismo agressivo e hipócrita. Devassando pinturas de Bosch, Bruegel, Rubens e Fra Angelico, ela mapeia as ideias medievais que sustentam o fundamentalismo religioso de hoje.

Num movimento pendular entre o macro e o micro, o filme sempre volta a Malafaia como síntese do fenômeno. É notável o acesso que Petra teve ao pastor na sala de jantar, no escritório, no carro, no avião particular e em encontros particulares com Bolsonaro. Talvez tenha perdido a oportunidade de lhe fazer uma pergunta fundamental: o que levou o pastor que apoiou Lula entre 2002 e 2010 a se tornar um de seus principais opositores? Caberia relacionar essa mudança ao enriquecimento pessoal e de sua igreja?

Para além dos fatos e arquivos com que Petra e sua equipe constroem esse arrazoado de grande potência audiovisual e importância analítica está o habitual desalento da cineasta perante um Brasil sempre à beira do descarrilhamento. As últimas imagens, dos destroços deixados pelo 8 de janeiro no Congresso e no STF, trazem a noção de apocalipse para bem perto de nós e de agora. Por sorte, nem tudo o que anunciam os arautos do atraso se torna realidade. Malafaia assegurava que Lula não seria eleito em 2022. A profecia se esborrachou. Adiamos o fim do mundo por, quando nada, mais um filme de Petra Costa.

>> Apocalipse nos Trópicos está nos cinemas e, a partir de 14 de julho, na Netflix.

2 comentários sobre “Da Idade Média ao 8 de janeiro

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