O AGENTE SECRETO
Como em Retratos Fantasmas, o já mítico cine São Luiz, no centro de Recife, é a semente de onde germina O Agente Secreto. Não só porque foi da pesquisa para aquele documentário que brotaram as ideias para este filme, mas porque o São Luiz representa toda a cinefilia que o engendrou. Desde sempre, mas especialmente desde Bacurau, Kleber Mendonça Filho faz um cinema nutrido de cinema. Sua maior virtude, portanto, é ser original ainda assim.
O Agente Secreto está salpicado de referências aos filmes de gênero, aos filmes B, a sucessos dos anos 1970 e ao próprio ambiente das salas de cinema. O sogro do protagonista, papel do ator Carlos Francisco, é projecionista do São Luiz, evocando um personagem real de Retratos Fantasmas. Entre a paródia e a reverência, Jean-Paul Belmondo é citado como o falso agente secreto de O Magnífico, o Tubarão de Spielberg tem lugar estruturante na trama – aludindo ainda à presença de tubarões nas praias recifenses –, O Exorcista provoca transe de possessão em espectadores, o local do antigo cine Boavista ressurge com sua utilização atual, e por aí afora.
Dentro e fora do cinema, abre-se um painel do espírito do Brasil por volta de 1977. O personagem de Wagner Moura volta com nome falso à Recife natal, ameaçado de morte pelo industrial mafioso que quis se apossar de suas pesquisas tecnológicas na Universidade Federal de Pernambuco. Quer juntar-se ao filho e com ele partir para o exterior, além de localizar documentos de sua falecida mãe, que não conheceu.
Era uma época “cheia de pirraça”, como diz uma cartela no início do filme. Mas, à parte as repetidas zooms sobre a foto de Ernesto Geisel, não se fala diretamente da ditadura. Esta transparece na atmosfera de tensão e autoritarismo desde a sequência inicial, indicativa das execuções sumárias e da indiferença do poder policial. O arbítrio, a pistolagem e o medo contaminam tudo – dos acertos entre matadores de aluguel à postura despótica de um delegado de polícia, passando por um camburão cheio de cadáveres. A figura do empresário truculento sintetiza o braço civil da ditadura que até pouco tempo chamávamos apenas de “militar”.
É interessante ver um filme que fala daquele momento pelas bordas, mostrando como o estado de exceção se espraiava pela sociedade, deixando espaço para o poder econômico dar as cartas na micro e na macropolítica. Curioso também é ver um personagem como o vulgo Marcelo, que mais observa e se espanta do que propriamente age. As ações e o humor ficam a cargo da grande quantidade de coadjuvantes. Marcelo é uma caixa de ressonância que reflete o nosso próprio espanto, seja com a matança ao redor, seja com uma assustadora gata de duas caras.
Os muitos personagens de O Agente Secreto formam uma espécie de cenografia humana, cheia de cor e peculiaridades. As intervenções hilárias de Dona Sebastiana (Tânia Maria, senhorinha revelada em Bacurau), a insolência dos “homens da lei” e dos “fora da lei”, e tantas outras figuras pitorescas colocam o filme numa permanente fronteira entre a comédia de costumes e o thriller de ação, entre a crônica de época e o drama político.
Kleber demonstra um conhecimento superior da narrativa puramente cinematográfica, o que lhe permite trafegar entre gêneros e inserir o absurdo na lógica do realismo. A fábula da perna cabeluda, tema de uma conhecida lenda urbana de Recife, provê tanto momentos cômicos – como o ataque aos praticantes de safadeza num parque –, quanto cenas inquietantes pela morbidez, dado este fundamental no filme. O inusitado está sempre à espreita, mesmo quando estamos numa repartição pública ou num saguão de cinema.
A forma como o filme se impõe ao espectador, com a jocosa maturidade da direção, é fruto também de uma produção esmeradíssima que não poupou recursos na reconstituição de época. Dos carros coloridos abundantes nas ruas aos orelhões e antigos projetores de película, passando por fitas cassete, garrafas de Coca-cola antepassadas e camisas masculinas abertas no peito, a imersão visual nos anos 1970 é simplesmente prodigiosa. Some-se a isso a fotografia da russa Eugenia Alexandrova com lentes vintage em tela superpanorâmica, e estamos plenamente mergulhados naquele pedaço de passado.
A trilha sonora alterna sonoridades aflitivas com ricos achados musicais. Achei particularmente brilhante o uso de pífanos na caçada final, se não me engano a mesma gravação aplicada por Eduardo Coutinho no duelo decisivo do seu filme de cangaço Faustão.
Eu arriscaria dizer que a realização de O Agente Secreto está ligeiramente acima da história central que conta. A exuberância de Kleber no trato com o cinema se sobressai nas pequenas tramas paralelas, nos episódios laterais que contribuem para o painel urbano de então. O roteiro lança mão de uma “moldura” atual, com as universitárias que pesquisam a história de Marcelo, uma das quais vai conduzir o epílogo nos dias de hoje. Não vejo aí um acréscimo, mas quase um anticlímax para um filme de resto extraordinário.
>> O Agente Secreto está nos cinemas


Acabamos de assistir o filme, e ler você foi uma forma de rever e curtir de novo. Tive a sensação de uma puxada de tapete no final, que você bem traduziu como quase um anticlímax, mas me deu a sensação de que houve algum corte, sabe-se lá porque. Mas após a sessão, saí alimentada de cinema. Muito legal o título, conversando com “Recife Frio”. Gosto a cada dia mais do Kléber, acho que ele se diverte fazendo. E me diverti lendo o blog também.
Duaia Assumpção
Que bacana encontrar você por aqui, Duaia. Ter saído alimentada do filme é um belo elogio. O Kleber é fera. Bom saber que o blog te diverte. Beijos!
já vi o trailer uma porrada de vezes!
sua crítica só aumenta a vontade de ver no telão.
já já!
Estava esperando sua crítica!!!
Direção de arte e trilha sonora muito elogiados. Você costuma dar o crédito, nesse texto ficou faltando.
Tenho dois parágrafos falando desses aspectos. Você não deve ter lido até o fim.