O FILHO DE MIL HOMENS
No documentário De Lugar Nenhum, perfil livre, leve e solto de Valter Hugo Mãe exibido na recente Mostra de Cinema de SP, o escritor diz que aprecia os romances “que se elevam acima do enredo”. Para ele, é o que justifica a literatura. A gente bem pode dizer o mesmo do cinema: quando um filme se eleva acima da história que conta, o cinema se justifica. Daniel Rezende procura seguir essa receita na adaptação de O Filho de Mil Homens. Transcender o mero relato na busca de uma poética cinematográfica.
Com poucos diálogos, o filme busca se comunicar pela interação entre os olhares dos personagens e o “olhar” da câmera. Uma cenografia de fábula e locações sugestivas servem para transmitir algo do estilo de Valter Hugo Mãe em sua prosódia que combina o rústico e o terno, as pulsões do corpo e as delicadezas da alma.
A solidão do pescador Crisóstomo (mesmo nome do cachorro de VHM) e seu desejo de dividir o coração com um filho é o núcleo principal do livro e do filme, mas não o mais tocante. Tal como em O Último Azul, eu sigo tendo dificuldade em “comprar” a escalação de Rodrigo Santoro nesse tipo de papel. Ainda mais quando sua caracterização, aqui, indica bem mais que os 40 anos de Crisóstomo no livro. Daí que o filme me pareça melhor quando se afasta dele em benefício das demais personagens.
A anã (Juliana Caldas) que engravida para despeito das mulheres “normais”, o “maricas” Antonino (Johnny Massaro) que se reprime, a mulher-amor Isaura (Rebeca Jamir) e seus circundantes formam a pequena constelação de pessoas que o escritor oferece como substrato de uma humanidade dependente do afeto e do sentimento de família para se sentir no mundo. Ao mesmo tempo, revela os preconceitos e a homofobia de uma comunidade afastada no espaço e, por conseguinte, no tempo.
As poucas mas boas intervenções da narração de Zezé Motta trazem a dicção do escritor para perto do filme, mas o que prevalece é a sensorialidade das cenas, a iluminação pictórica do fotógrafo Azul Serra, as vinhetas oníricas tendendo ao realismo mágico, a encenação na forma de tableaux e a tessitura bem resolvida da cronologia dos fatos. Destoa do tom geral o capítulo VI com vozes empostadas e uma modulação que nos expulsa da intimidade com o filme. De qualquer forma, mesmo soando mais lacônica do que lírica em boa parte do tempo, essa transposição vence o maior dos obstáculos: não é uma simples ilustração do enredo.
>> O Filho de Mil Homens está nos cinemas.


Carlinhos, essa estética Netflix que tudo permeia..Ainda esses trailers com personagens sussurrantes e efeitos (sempre os mesmos)..tudo isso não me estimula muito a assistir rs Vou até tentar (pois posso estar errado!), mas tenho a impressão de que vai ser novamente aquela sensação de já ter assistido a esse filme antes..😋