Aldeia em transe

A QUEDA DO CÉU

O céu pontua o filme. Ora muito azul, ora coalhado de estrelas ou coberto de nuvens negras ameaçadoras. David Kopenawa está preocupado com o futuro do seu povo depois da sua morte. Sua voz ecoa no céu da aldeia.

A Queda do Céu leva o nome do best-seller escrito pelo líder yanomami em parceria com o antropólogo francês Bruce Albert. Um libelo único contra a destruição da floresta amazônica. Um alerta vermelho: o céu já caiu uma vez, e só não caiu ainda de novo porque os yanomami o sustentam com a força dos espíritos xapiri. Há um quê de megalomania indígena nessa crença, de resto plenamente justificada dentro da cosmogonia yanomami.

No filme de Eryk Rocha e sua parceira de vida e arte Gabriela Carneiro da Cunha, Kopenawa é visto administrando conflitos e cuidando dos doentes através de mensagens de rádio. É o xamã em ação com ajuda da tecnologia. Os garimpeiros representam uma ameaça constante. Cercam e devastam as terras indígenas. A fumaça do garimpo assusta a tribo. De maneira geral, os napë (brancos capitalistas), o agronegócio e o chamado “povo da mercadoria” são responsáveis pela desgraça do mundo. Trouxeram doenças e morte, como bem sabemos. Para piorar a situação, indígenas “idiotas” se bandeiam para o lado do garimpo em busca de dinheiro.

É para enfrentar tudo isso que um grupo de yanomamis caminha longamente em direção à câmera na bela cena inicial do documentário. Eles e elas portam armas e grandes mochilas de folhas. Dirigem-se a algum lugar que ainda não sabemos qual é. Aos poucos compreendemos que preparam a festa do reahu. Para isso pintam os corpos, cozinham o mingau de banana e moem o yãkoana, uma resina vegetal alucinógena. A inalação do pó do yãkoana coloca os xamãs em transe na festa do reahu. Assim eles vivem o mundo dos sonhos.

O yãkoana é uma substância política para os yanomami. Propicia a aliança com os espíritos da floresta e os municia para a resistência. A fala de Kopenawa, porém, vai além da mera resistência. Ela profecia a vingança contras os napë. Uma vingança executada não diretamente pelos indígenas, mas pelo mundo. Se o céu cair, as cidades serão destruídas, as águas e o fogo vão invadir tudo. As epidemias já estão anunciando esse apocalipse. Os brancos vão chorar.

Eryk e Gabriela ilustram isso com imagens de destruição do filme apocalíptico La Nature, do armênio Artavazd Pelechian (veja aqui na íntegra). Em seguida, aparecem crianças brincando à luz noturna e a notícia do nascimento de um bebê. Ou seja, a preservação do mundo dependeria da continuidade dos yanomami.

As belíssimas imagens de A Queda do Céu, o desenho de som virtuosístico e a montagem sempre instigante de Renato Vallone se somam num filme imersivo e sensorial. Evita-se quase totalmente as cabeças falantes, privilegiando a voz over, os interlúdios oníricos e as cenas estendidas de caminhadas, duetos de fala e canto, danças ritualísticas. Uma longa conversa no escuro da noite sem estrelas nos coloca em sintonia com uma temporalidade especial.

A imagem derradeira, de uma faca empunhada no ar, conecta Eryk Rocha a uma iconografia grata a seu pai, Glauber Rocha. A aldeia em transe é um fenômeno ao mesmo tempo mítico e guerreiro.

>> A Queda do Céu está nos cinemas.

 

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