O demônio mora em frente

A VIZINHA PERFEITA

Forte candidato a disputar com Apocalipse nos Trópicos uma vaga entre os indicados ao Oscar de longa documentário, A Vizinha Perfeita (The Perfect Neighbor), em cartaz na Netflix, é um filme problemático. Por trás de um crime comum em conflito entre vizinhos, abre-se um vasto background onde se pode apontar racismo, obsessão pela propriedade privada e liberalidade armamentista. Para muitos, é um retrato metonímico da violência dos EUA profundos.

O filme de Geeta Gandbhir chama atenção pelo fato de ser quase inteiramente captado pelas câmeras corporais dos policiais que atendem aos sucessivos chamados de Susan Lorincz para dar queixa dos seus vizinhos. Vivendo sozinha com seus gatos num típico subúrbio estadunidense, ela acusa principalmente as crianças de invadirem seu espaço e atazanarem sua vida. As rusgas se tornam cada vez mais graves até que, sentindo-se ameaçada pela mãe de algumas crianças, que bate à sua porta, ela atira contra a porta e acaba ferindo de morte a mulher.

Toda a dramaturgia do filme conduz à demonização de Susan. Afinal, ela é uma mulher branca, de pavio curto, que não tolera as brincadeiras infantis e tem armas em casa. O ponto de vista dos policiais-cinegrafistas, como para desmentir as contumazes atitudes racistas, é sempre de acatar os argumentos das famílias negras e passar a mão na cabeça das crianças. O uso exclusivo das câmeras corporais em situações de rua limita muito a possibilidade de cada parte expor suas razões. A apresentação de provas em celulares é mínima.

Assim, o documentário caminha para a condenação de Susan, culpada pelo chamado “medo branco”, que a teria levado a cometer o crime. Soa como uma redenção diante de tantos crimes contra negros que acabam impunes. Nada justifica o tiro fatal, por óbvio, mas ainda assim fica-se sem nenhuma demonstração dos atos das crianças, nem do efeito desses atos sobre a psique de Susan, para além do que cada um diz nas confusas interações com os policiais.

O resultado é um filme algo sensacionalista, calcado no fetiche da filmagem precária. A repetição da chegada da polícia ao local do crime dá mostras desse interesse pelo lado espetacular. Outra cena que me perturbou quanto à dramatização do caso foi aquela em que um soldado entra na sala vazia e lê em voz alta o bilhete escrito por Susan na prisão. Para quem estava lendo se ali só havia a câmera de segurança? Para o filme? Já então havia um filme sendo feito? Em outros momentos, estranhei a presença de câmeras corporais testemunhando a dor dos parentes ao saberem da morte da mulher, uma forma de obscenidade dramática.

De resto, essa versão reality do true crime me pareceu bastante banal para justificar o hype em torno dela.

>> A Vizinha Perfeita está na Netflix.

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