O sorriso trágico de Gaza

GUARDE O CORAÇÃO NA PALMA DA MÃO E CAMINHE

No dia 16 de abril deste ano, um míssil israelense esfarelou a casa de Fatma Hassona, 25 anos, matando-a e a mais seis membros de sua família. Era somente uma pequena amostra do massacre perpetrado pelos sionistas em Gaza, que já ceifou a vida de mais de 70 mil palestinos. Fatma era Fatem para os íntimos, e é assim que a vemos nesse documentário dilacerante.

Dos vários filmes já feitos sobre o genocídio em Gaza, Guarde o Coração na Palma da Mão e Caminhe (Put Your Soul on Your Hand and Walk) tem o diferencial de mostrar a chacina pelo ponto de vista de uma única pessoa. Se as imagens que continuamente nos chegam de cidades destruídas, gente faminta nas ruas e crianças mortas se revestem de um aspecto um tanto genérico – acabam sendo as costumeiras “imagens da guerra” –, um contato tão próximo e individualizado como o que temos nesse filme nos faz sentir mais agudamente o que lá se passa.

A diretora iraniana Sepideh Farsi, radicada em Paris há 40 anos, tentava entrar em Rafah para documentar a situação em Gaza, mas não conseguiu passar além do Cairo. Lá, através de refugiados palestinos, ela conheceu online a fotógrafa e poeta Fatma, que documentava o horror ao seu redor. Durante um ano, entre abril de 2024 e abril de 2025, as duas se comunicaram pelos celulares. Fatem tornou-se os olhos de Sepideh em Gaza, enquanto a cineasta era o contato de Fatem com o mundo exterior.

O filme tem uma radicalidade que o torna especial. Tudo o que vemos é através da tela do celular de Sepideh ou de notícias na tela de sua televisão. Enquanto os ataques de Israel se sucedem e fecham o cerco em torno da casa de Sepideh, elas lutam contra as conexões ruins, as falas picotadas e a baixa qualidade da imagem. Essa precariedade nos coloca inteiramente dentro da experiência das duas.

Fatem era uma moça de inocência ímpar. Sorridente mesmo ao chorar e enumerar quantos parentes seus já haviam morrido no conflito, ela fala de seus sonhos de conhecer o mundo, ainda que sempre retornando para “minha Gaza”. Às sucessivas ordens de evacuação e aos bombardeios nos prédios próximos ela respondia com retalhos de esperança e uma visão trágica: “Você tem muitas opções para morrer em Gaza”.

Com o sorriso bonito que iluminava seu rosto, ela manifestava o desejo modesto de comer frango e chocolate, impossível já havia muitos meses. Já então a fome era o inimigo mais próximo. “Nós vivemos uma vida muito simples, mas até isso Israel quer nos tirar”, dizia.

Apesar da consciência da tragédia, Fatem não posava de vítima. Ao contrário, demonstrava uma atitude guerreira, orgulhosa do seu povo “bravo e forte” e da resistência que, para ela, o Hamas representava. Perguntada sobre o que a fazia ser forte, respondeu: “Porque não tenho nada a perder”.

Além das conversas a todo momento interrompidas, Fatem enviava a Sepideh áudios de bombardeios próximos e de poemas e canções de sua autoria. Enviava, principalmente, as fotografias que fazia pela cidade quando ainda podia sair de casa. Imagens de cortar o coração e de admirar pelo olhar apurado da fotógrafa. A cineasta, por sua vez, sofria pela impotência para ajudá-la. De suas estadas no Egito, na França, na Grécia ou no Canadá, apresentando seu filme anterior, Sepideh angustiava-se com Fatem presa em sua casa ou num abrigo de parentes em Gaza.

Sepideh Farsi deixou o Irã aos 18 anos, depois de ser encarcerada durante nove meses por esconder uma amiga dissidente. Outra amiga sua foi torturada e morta pelo mesmo motivo. Ao encontrar e se afeiçoar a Fatem, ela revive sensação de perda semelhante. E não só ela. Nós também sentimos o pesar de um sonho massacrado entre tantos. A boa fé de Fatem fica conosco e alimenta nossa indignação contra o holocausto palestino.

>> Guarde o Coração na Palma da Mão e Caminhe está nos cinemas.

Leia um trecho do poema O homem que vestia seus olhos, de Fatma Hassona:

Talvez eu esteja anunciando a minha morte
agora
Antes que a pessoa à minha frente carregue
Seu fuzil de elite
E tudo acabe
E eu termine.
Silêncio.
“Você é um peixe?”
Não respondi quando o mar me perguntou
Não sabia de onde vieram os corvos
Que avançaram sobre minha carne.
Teria parecido lógico?
— Se eu dissesse: Sim,
Deixe esses corvos avançarem
no fim
Sobre um peixe!
Ela atravessou
E eu não atravessei.
Minha morte me atravessou
E uma bala afiada de atirador
Fez de mim um anjo
Por uma cidade.
Imensa.
Maior que meus sonhos
Maior que esta cidade.

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