LUMIÈRE! A AVENTURA CONTINUA e uma nota sobre o livro HOMEM CINEMA – ALBERTO CAVALCANTI
Nove anos atrás, Thierry Frémaux, diretor artístico do Instituto Lumière e delegado geral do Festival de Cannes, nos brindou com um passeio deslumbrante por 108 pequenos filmes inaugurais do cinema, restaurados em ponto de bala. Era Lumière! A Aventura Começa. Agora, para comemorar os 130 anos da invenção do cinematógrafo, ele lança Lumière! A Aventura Continua (Lumière! La Aventure Continue), reunindo mais 120 “vistas” realizadas pelas equipes dos irmãos Lumière em diversas partes do planeta.
O deslumbramento continua, agora com música de Gabriel Fauré, conterrâneo e contemporâneo dos Lumière.
Lá estão os registros do mundo em movimento como até então não se via. O povo nas ruas, a diversão das crianças, o trabalho dos homens e das mulheres, desfiles militares, acrobacias circenses, pequenas comédias, merchandisings pioneiros, as primeiras encenações antes mesmo que Georges Méliès consagrasse as virtudes ilusionistas do cinema. O acervo dos Lumière é muito mais diversificado do que normalmente se pensa quando se atribui a eles o pioneirismo somente dos meros registros. Afinal, os “primeiros analfabetos do cinema” estavam inventando os rudimentos de uma gramática nova.
Em sua narração caudalosa e apaixonada, Frémaux usa graciosamente os filmes dos Lumière para ilustrar a invenção do cinematógrafo antes mesmo que aquelas imagens existissem. Aponta detalhes curiosos nas cenas e destaca as qualidades dos irmãos para a composição estética do quadro, fundamental numa época em que as câmeras ainda não se moviam, a não ser quando levadas por veículos em movimento. Com frequência, a narração ressalta a “pureza” e a “candura” desse primeiro cinema, muito embora já existisse, nas palavras de Frémaux “a obrigação de impressionar” o público.
Pensando-se nos Lumière como uma empresa – hoje um instituto cultural –, esses dois longas-metragens de compilação não deixam de ser institucionais de uma marca. Mas isso em nada reduz a beleza e a importância extraordinárias do que vemos na tela. Pode-se até argumentar que esse segundo filme repete o mesmo discurso do primeiro, mas as imagens aqui trazidas são uma descoberta maravilhosa sobre o mundo da virada do século XX. Não falta mesmo a primeira tomada feita com película de 75mm, algo que, na época, equivalia ao IMAX de hoje.
>> Lumière! A Aventura Continua está nos cinemas.
Os 130 anos do cinema receberam também a minha homenagem com o site-livro Fim de Turno – saídas de fábrica no cinema de Lumière a Loach, que explora a permanência do motivo inicial do cinematógrafo – a saída de fábrica – através das décadas seguintes até a atualidade. O site-livro contém textos e todas as cenas compiladas, segundo seu uso e motivação: o cinema industrial, a dramaturgia da fábrica e do portão de fábrica, a política operária, as novas configurações do trabalho, etc. Fim de Turno está disponível aqui.
No livro Homem Cinema – Alberto Cavalcanti, Roberta Ellen Canuto nos dá uma visão ampla e aprofundada da carreira do mais internacional de todos os cineastas brasileiros. Do mergulho em acervos institucionais e privados, além das memórias de Cavalcanti, até hoje nunca publicadas, Roberta emergiu com um perfil muito vivo do diretor, reafirmando sua condição de pioneiro do cinema moderno, mas sem dissimular as muitas polêmicas que o cercaram, principalmente no documentarismo inglês e em suas incursões no cinema brasileiro.
A ênfase recai sobre o papel de Cavalcanti na conjugação de técnica, invenção e preocupação social. Da vanguarda francesa, onde inaugurou os grandes perfis de cidades dos anos 1920 com a Paris de Rien que les Heures, a sua múltipla atuação nos documentários britânicos da década de 1930, “Cav” é apresentado como o precursor do que viria a ser o Neorrealismo italiano. Num salto mortal bem calculado, Roberta o situa também na origem de um pensamento que iria desaguar no nosso Cinema Novo. A tão celebrada diluição de fronteiras entre o documentário e a ficção também já estava anunciada nos filmes do mestre.
Embora a edição de uma certa Coleção Olhos Livres deixe a desejar em matéria de metadados e revisão de texto, o livro é bonito como objeto e importantíssimo como estudo de uma obra seminal para o cinema mundial.