Leni no paraíso das memórias

RIEFENSTAHL

Depois de Leni Riefenstahl, a Deusa Imperfeita, o revelador documentário de Ray Müller lançado em 1993, parecia que nada mais poderia ser acrescentado ao perfil da cineasta de Hitler. Ali estavam as contradições, a retórica autodefensiva e ao mesmo tempo a paixão de Leni pela beleza das imagens. Diante da câmera, julgando ser homenageada, a esfinge se oferecia num strip-tease moral.

Mas eis que esse novo documentário de Andres Veiel vem jogar novas luzes sobre o que Leni pretendia que o futuro guardasse dela. A maior parte do que é exibido no filme provém dos arquivos particulares de Leni, organizados e pesquisados por uma equipe liderada pela jornalista Sandra Maischberger, que assina a produção. Foram 7.000 caixas de roteiros, cartas, anotações, trechos de filmes, fotografias, gravações privadas em super 8, fitas cassete com gravações telefônicas e vários rascunhos para suas memórias.

“As memórias são o único paraíso do qual não nos podem expulsar”, ensina o escrito em um dos pacotes. Nesse paraíso repousam as imagens da linda atriz que performava nos filmes de montanha alemães dos anos 1920-30; da resoluta cineasta que comandava homens nas filmagens do III Reich; da intrépida fotógrafa que, já idosa, convivia com os nuba do Sudão.

A esse fascinante material, com grande perspicácia de montagem, Riefenstahl conjuga trechos de entrevistas e de filmes que levam adiante o desnudamento de Leni. As imagens de bastidores desmentem, por exemplo, sua afirmação de que “nada foi preparado” para as filmagens do congresso nazista que deu origem a O Triunfo da Vontade. Cenas comprobatórias de que ela usou ciganos de um campo de concentração como figurantes em Tiefland, rodado durante a II Guerra, atestam que ela sabia dos campos, ao contrário do que costumava jurar. Em outro episódio, foi acusada de ter testemunhado o fuzilamento de trinta judeus na saída de um cenário de filmagem.

Chamam atenção em especial as informações advindas de trechos não usados em filmes ou na autobiografia que Leni publicou em 1987. Os outtakes de O Triunfo da Vontade e flashes do making of de Olympia deixam clara a ascendência de Leni sobre as equipes, assim como sua dedicação à estética nazista. Já algumas passagens do rascunho de sua autobiografia, excluídos da versão editada, contam do assédio sexual de Goebbels sobre ela e do estupro perpetrado por um tenista amigo.

Registros feitos por seu assistente e namorado Horst Kettner no Sudão mostram a rudeza com que Leni comandava os seus “modelos” da tribo nuba, ou como entretinha as crianças com guloseimas tal como se joga comida aos bichos num zoológico. São cenas de arrogância explícita que se contrapõem ao discurso de vítima em que se refugiou depois da II Guerra. O argumento de que a arte seria “o oposto da política” não se sustenta à vista de sua história.

“Minha vida teria sido melhor se eu tivesse morrido no auge da minha carreira”, lamenta. Seus anos subsequentes foram de “cancelamento” e fuga dos holofotes até o retorno às luzes na década de 1980. Mesmo aí, interrompia entrevistas com frequência, dizendo-se injustiçada por mentiras.

De qualquer forma, esse documentário primoroso não se esquiva a estampar a beleza e a energia de Leni Riefenstahl, dois atributos que ela exaltou em sintonia com o pensamento nazista. Era um tempo que ficou para trás, hoje que a extrema direita não mais disfarça sua inclinação para o feio e o acovardado.

>> Riefenstahl não tem lançamento previsto no Brasil.

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