O que as imagens falam por si?

A badalada sessão única de Um Dia na Vida, o novo não-filme de Eduardo Coutinho, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo levantou questões sobre consumo de televisão, deslocamento de imagens para espaços inusitados, limites de autoria etc. Mas não sei se alguém discutiu a capacidade de as imagens falarem por si.

Coutinho filmou 19 horas de programação televisiva num dia comum, selecionou trechos e editou em 90 minutos de filme, sem nenhuma outra intervenção. Como tudo o que vem de Coutinho, Um Dia Na Vida despertou imensa curiosidade e alimentou especulações teóricas – algumas, nesse caso, bem desgastadinhas. Não vi o filme, mas, ao que parece, as cenas da TV estão lá falando por si mesmas, sem efeitos de montagem que provoquem contrastes retóricos ou revelações. O mero acúmulo de didatismos, banalidades e informações apressadas seria suficiente para “dizer” alguma coisa sobre a TV e quem a vê, além de uma eventual distância dela em relação ao cinema.

A ausência de interferências mais evidentes (acréscimos, interpretações, reordenações) responde pela controvérsia principal: aquilo é ou não um filme? De certa forma, o doc Pacific, de Marcelo Pedroso, composto inteiramente de filmagens de turistas em cruzeiros para Fernando de Noronha, já tinha levantado essa dúvida. O realizador seleciona e organiza um material alheio, e se abstém de qualquer outra participação. As cenas, retiradas de seu contexto e suporte originais, “dizem” as mesmas coisas e ao mesmo tempo ganham outros significados.

Retomo essas questões depois de assistir ao média-metragem Ninguém Segura o Brasil, realizado no ano passado por Alfeu França. Depois de uma pesquisa no Arquivo Nacional e no seu acervo pessoal, Alfeu preparou uma compilação de 30 minutos com institucionais, comerciais, jingles e trechos de filmes que reproduziam a ideologia do regime militar para consumo na TV e no cinema. São inúmeros desfiles, mensagens ufanistas, clipes caretas, musiquinhas de sintetizador, narrações de Cid Moreira, conclamações contra “os trapos vermelhos do comunismo”. Uma parafernália de comunicação destinada a produzir a imagem do “Brasil grande”: um país em ritmo acelerado de desenvolvimento, nacionalmente integrado, estrategicamente seguro, com harmonia de raças, classes e faixas etárias. A negação de todo conflito e a anulação das forças sociais pelo discurso homogêneo de que “o Brasil é feito por nós”.

Duas ou três cartelas situando essa produção no tempo e no contexto da ditadura são toda a intervenção do diretor, além, claro, da seleção e montagem. Relutei em compreender a eficácia de um trabalho que simplesmente justapõe os materiais, sem avançar na sua interpretação, demolição ou recriação. Conversei com Alfeu, que se manifestou convicto de sua escolha: “Cada vez mais acredito no potencial presente nas imagens de arquivo e fico convencido de sua capacidade de falar por si, de transmitir mensagens sem a necessidade de maiores contextualizações. Poderíamos, sim, ter entremeado o documentário com entrevistas, narrações didáticas e explicativas, mas depois de refletirmos nos pareceu óbvio e apropriado deixar a própria propaganda da época falar sobre a propaganda da época (…) Sou bastante satisfeito com a nossa decisão de experimentar e permitir que um material que arrancamos de quatro décadas de repouso seja apresentado e digerido e processado por cada espectador a partir de seu próprio corpo de conhecimentos”.

No meu entender, a capacidade dessas imagens de falarem por si é que está em questão. Passados mais de 30 anos desde a volta da democracia, elas já se banalizaram a tal ponto em documentários recentes que se tornaram uma espécie de Judas cansado de apanhar. Até nas sucessivas oficinas que o Recine vem fazendo ano após ano, esses materiais têm sido usados de maneira irônica e subversiva. Voltar a eles requer agora um desejo de ver o seu reverso. Ou pelo menos um olhar mais incisivo do que simplesmente recolocá-los na tela em sua integralidade.

Mas Alfeu tem um trunfo para jogar na mesa de debate. Em seu roteiro de edição, ele diz ter adotado, a grosso modo, uma estrutura de narrativa mitológica: “Cenário e personagens são apresentados, surge o conflito, surge o herói, o plano do herói, a batalha do herói, o triunfo e a paz consequente”. Das incertezas de 1964 até a plena implantação da ordem e da “paz social”, passando pela evocação de D. Pedro II em Independência ou Morte, teríamos, portanto, esse esboço de épico nacional fardado. O depoimento do diretor fica assim condicionado à eventualidade de o espectador perceber esse subtexto metafórico que teria orientado a ordenação das cenas.

Se perceber, terá uma leitura (superestimada, talvez) do aparato cultural-ideológico do governo militar. Se não perceber, como aconteceu comigo, estará diante de uma compilação que certamente fala por si, mas diz aquilo que todos já sabíamos.  

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