O livro do DOC TV

Uma das mais felizes iniciativas do governo Lula na área do audiovisual, aparentemente descontinuada no governo Dilma, o programa DOC TV possibilitou a criação de quase 200 documentários e a exibição de mais de 3.000 horas de material nas TVs públicas de todo o país. O programa foi reeditado por outros países da América Latina e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

Essa história de sucesso acaba de ser contada em livro, organizado pela jornalista Maria do Rosário Caetano. Com textos de apresentação de Orlando Senna, Silvio Crespo e Maria do Rosário, resenhas críticas de 10 docs e sinopse e ficha técnica de toda a coleção, Doc TV Operação em Rede será lançado em São Paulo durante o Festival É Tudo Verdade, em fins deste mês. No Rio, articula-se um lançamento possivelmente no âmbito do Cinesul, em junho.

A seguir, adianto o texto que me coube fazer a respeito de Acidente, de Cao Guimarães e Pablo Lobato, um dos vários rebentos do programa que viraram pequenos clássicos do doc brasileiro contemporâneo.

Poesia é uma ou duas linhas e por trás uma imensa paisagem

Crianças vestidas de anjo numa procissão, uma carroça subindo a ladeira, um homem olhando o vazio, dois copos de plástico rolando na brisa. Imagens assim banais e descontextualizadas intrigaram os primeiros espectadores de Acidente. Que informações elas transmitiam, perguntavam-se os objetivistas do documentário. Que relação havia entre elas, além do fato de terem sido colhidas em pequenas cidades do interior de Minas Gerais, indagavam-se os ciosos da narratividade. Melhor deixar a análise para uma segunda visão, ponderavam críticos responsáveis.

De fato, os pequenos mistérios de Acidente se revelam com calma – e melhor ainda numa revisita ao filme. Arquitetos do acaso, Cao Guimarães e Pablo Lobato deixaram-se guiar pelo fortuito quando visitavam aquelas cidades de nomes sugestivos. Lançavam sobre elas um olhar sem pautas, uma observação interessada não nos nexos possíveis entre fatos e pessoas, mas nos eventos imprevistos, flagrantes mínimos ou micro-histórias que fossem capazes de produzir um sopro de identidade para cada lugar.

Assim, alguns são representados por metáforas alusivas ao seu próprio nome. O município de Tombos, por exemplo, é visto em fragmentos de prédios enquadrados contra um imenso céu azul, assim como se a cidade tivesse virado de ponta-cabeça. Fervedouro, por sua vez, é mostrada na figura de um caminhoneiro que troca seu veículo abrasador pelo mergulho numa piscina. Espera Feliz, minha favorita, faz-se presente através de diversos planos curtos e estáticos onde subitamente se desenha uma ação, criando no público uma (feliz) expectativa a cada momento. Há mesmo o recurso ao mero trocadilho, como na cidade de Jacinto, presente na pele de um velho (aparente morador de rua) que entoa uma canção de dor de cotovelo.

Mas a funcionalidade das figuras de linguagem não são o único procedimento de que se valem Cao e Pablo. A cidade de Ferros comparece por meio de duas ações infantis em direções opostas: um menino que escala um pau-de-sebo e outro que mergulha nas águas de um rio. Abre Campo e Descoberto se inserem por meio de imagens de ruas semidesertas ou de uma movimentação de pessoas estranhamente desconectadas, como num sonho. Vazante e Heliodora se mostram mais confessionais, com personagens que interagem com a câmera.

O acidental se opera em vários níveis. O material gravado em cada cidade contém o seu próprio dispositivo, fruto da escolha momentânea dos realizadores: ora a observação estendida, como no balcão do bar em Entre Folhas; ora um esboço de interação; ora, ainda, a pura busca da plasticidade de um pedaço de chão, um céu noturno, o vento na relva. O campo semântico do título inclui, naturalmente, os acidentes geográficos que determinam a topografia das cidades e em boa medida a relação que com elas estabelecem os seus moradores.

Por outro lado, se a ordenação das cidades atende ao desejo de formar um (duvidoso) poema com seus nomes, pode-se perfeitamente argumentar que outras várias ordens seriam possíveis e igualmente poéticas. Prevalece, então, mais uma vez, a impressão de casualidade, tanto no interior de cada episódio, como na sua sucessão.

Dizer, porém, que o acidental do filme quer corresponder ao acidental da vida seria reduzi-lo ao que não é. A impressão do imprevisto contrasta com sinais de uma construção minuciosa na edição de imagens e de sons (offs, ambientação sonora do Grivo, um latido de cão que transborda de Pai Pedro para Abre Campo). O acidente, no fundo, é uma reconstrução a que se chega na base do recorte, da aproximação de coisas distantes e do acréscimo desmotivado.

Realizado em 2005 e exibido com êxito e prêmios em vários festivais nacionais e internacionais, Acidente foi um dos primeiros rebentos a demonstrar o potencial do programa DOC-TV, seja em termos de diversidade de modelos documentais, seja em abertura para a modernização da prática no Brasil. O filme tornou-se referência nos estudos do chamado “documentário de dispositivo”, que substitui os tradicionais roteiros e pesquisas por eleições prévias e critérios predefinidos de filmagem que vão gerar a unidade e a força do filme.

Acidente também ajudou a consolidar certos tipos de experiência que caracterizam o documentário mineiro contemporâneo. Entre elas, a rarefação do aspecto narrativo em troca de uma lógica mais lírica; a atenção a uma fenomenologia do contato entre homens e natureza; a tematização de acontecimentos miúdos, corriqueiros ou levemente excêntricos; e por fim a convivência de estéticas do documentário, da videoarte e das texturas mais evocativas do Super 8.

3 comentários sobre “O livro do DOC TV

  1. Aguardarei com grande expectativa o lançamento do livro sobre o Programa DOCTV. Como criador do programa e coordenador executivo de suas primeiras edições, inicialmente como responsável pelo Núcleo de Documentários da TV Cultura, e , posteriormente, como Assessor Especial do Ministro da Cultura atuando na Secretaria do Audiovisual,causa-me surpresa a notícia, tendo em vista que não fui procurado para prestar qualquer contribuição à publicação. Oxalá, não faça falta!

    • Explicação da Maria do Rosário Caetano em resposta ao comentário de Mário Borgneth: “Orlando Senna ficou responsável por texto geral que desse conta de todo o trabalho dos criadores do projeto. O livro se compõe com este texto, as dez críticas e a filmografia”.

  2. Minha sugestão: mandar cópias (não precisam ser autografadas…) para:
    – Exma. sra. ministra da (Falta de) Cultura, Ana de Amsterdam… digo, de Hollanda;
    – Exmo. sr. presidente da Funarte (e eminência parda e vingativa do MinC), Antônio Grassi;
    – Exmo. sr. Controlador Geral da União, Jorge Hage (com autorização para que se possa xerocar o livro para todos os bur(r)ocratas cabeça-de-planilha do órgão);
    – Sr. Luís Carlos Barreto, cidadão doido para ter os cofres públicos disponibilizados somente para ele e sua produtora; e
    – Exma. sra. presidente da República, economista (cabeça-de-planilha) Dilma Rousseff.
    Motivo: ver se eles se mancam do crime que estão cometendo contra a cultura audiovisual brasileira.

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