Birri, entre a realidade e o sonho

(Texto publicado originalmente na revista Filme Cultura 57, out/dez 2012)

birri capaFernando Birri teve três momentos de grande importância para o cinema brasileiro. O primeiro surgiu do convite de Rudá de Andrade para que ele viesse ao Brasil divulgar a pioneira Escola Latino-americana de Documentários de Santa Fé (Argentina), em 1962. A exibição de seu curta Tire dié (1960), sobre meninos que pediam moedas aos passageiros de trens, e do longa neorrealista Los inundados (1961) inspirou e estimulou muitos realizadores brasileiros interessados em um cinema de empenho social. Maurice Capovilla e Vladimir Herzog chegaram a fazer estágio em Santa Fé, junto com Fernando Solanas e Ricardo Aronovich.

Um ano depois, Birri viria para o Brasil na condição de exilado. Durante aquela estada fértil, ele e seus companheiros de Santa Fé formaram um grupo com Paulo Emilio Salles Gomes, Rudá, Capovilla, Herzog, Sérgio Muniz, Geraldo Sarno, Jean-Claude Bernardet e o fotógrafo e produtor Thomaz Farkas, do qual resultariam os primeiros filmes da chamada Caravana Farkas, capítulo importante do documentarismo brasileiro. Foi o segundo momento.

O terceiro foi quando da criação da Escola Internacional de Cinema e TV de San Antonio de los Baños, em Cuba, em 1986. Como um dos idealizadores e primeiro diretor da escola, Birri teve importância fundamental para dezenas de cineastas brasileiros que desde então se formaram ali e, de alguma maneira, abraçaram os princípios do Nuevo Cine Latinoamericano.

Pode-se dizer que um quarto momento se deu em 2008, com a publicação no Brasil do livro O alquimista democrático – Por um novo novo novo cinema latino-americano, coletânea de escritos teóricos e poéticos de Fernando Birri editada originalmente na Argentina em 1999. A edição brasileira, com tradução de Eric Nepomuceno e prefácio de Orlando Senna, foi produzida e distribuída pelo Cine Ceará, seguindo-se a uma homenagem prestada a Birri pelo festival dois anos antes.

Poesia e teoria sempre caminharam juntas no pensamento de Birri. Na Venezuela, em 1982, ele chegou a criar um certo Laboratório Ambulante de Poéticas Cinematográficas. Esta é a sua maneira de ter a utopia sempre como meta e a realidade como chão. Nisso o livro é um autorretrato do autor, já que alterna poemas com palestras, ensaios, reflexões, manifestos, trechos de roteiro, entrevistas, anotações de trabalho etc. Muitas vezes, a dicção poética intervém na própria retórica da prosa, como pássaros saindo da pedra. Por sua vez, a variedade de registros dá conta de um homem que, essencialmente poeta, se reinventou sempre, seja como ator, marionetista, cineasta, educador ou animador de uma tomada de consciência crítica dentro do cinema latino-americano.

No percurso de 35 anos coberto pelo livro (1956-1991), nota-se uma mudança sensível das prioridades de Birri do documentário para o rumo da ficção. Nos tempos de Santa Fé, documentar o subdesenvolvimento e “filmar  realisticamente” eram a única forma de não se acumpliciar ao subdesenvolvimento. Já na era do Novo Cinema Latino-americano e da Escola de Cuba, contagiado pelos influxos do realismo mágico de Gabriel García Marquez, ele deixa a ficção assumir preponderância como “projeto crítico, sonho crítico, delírio crítico, cinema e TV visionários, visão crítica, antecipatória da realidade de Três Mundos” (aqui referindo-se à América Latina/Caribe, África e Ásia).

birri orgUm dos trechos mais curiosos do livro diz respeito ao projeto de filme experimental e instalação denominado Org, apresentado na Bienal de Veneza de 1979. Através de um telegrama a Carlo Lizzani, uma carta ao cenógrafo e fragmentos dos diários de edição, Birri dá pistas sobre o que terá sido esse filme de quase três horas de duração, a que o espectador tinha acesso depois de transpor os “infernos órficos”, ou seja, abrir caminho em ambiente sobrecarregado de objetos em desuso e uma selva de celuloide. Na tela, enfim, encontrava um ensaio de ficção científica dedicado à improvável trindade Wilhelm Reich/Che Guevara/Georges Méliès.     

O dono das barbas longas que aparece fartamente nas muitas fotos do livro, hoje com 87 anos, tem um perfil bem mais diversificado e petulante do que supõe quem o conhece apenas na superfície.     

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