Contos da Índia profunda

Meu interesse pelo cinema da Índia se renova sempre que aparece uma oportunidade. Agora mesmo está em cartaz no Museu dos Correios de Brasília a mostra Cinema Indiano, com curadoria de Carina Bini, uma brasileira radicada em Kerala, para mim o estado mais simpático da Índia. Carina se dedica a divulgar o cinema das diversas regiões do país, falado em outros idiomas que não o hindi de Mumbai, sede de Bollywood e capital da indústria cinematográfica indiana. No ano passado, ela trouxe a Brasília uma obra-prima recente, O Navio de Teseu.

Não compareci à mostra, mas tive oportunidade de ver dois filmes que integram a programação: Astu e Cavalgando nos Sonhos.

Dirigido pela prolífica dupla Sumitra Bhave e Sunil Sukhtankar, Astu é o típico filme de qualidade indiano alheio à mitologia bollywoodiana. É falado no idioma marathi e se passa na cidade de Pune e arredores, no Oeste da Índia. Como de praxe, lida com temas mundanos para passar mensagens transcendentes. Nesse caso, temos um velho professor e estudioso de filosofia tradicional que começa a sofrer de Alzheimer. A perda da memória é um fenômeno que o roteiro explora em duas frentes: a mundana, através das relações entre o professor e suas filhas e netos; e a espiritual, na medida em que ilustra a máxima zen de que só o presente importa, e que nele está contida toda a rede de memórias que carregamos.

Quando o filme começa, Ira, a filha, está conduzindo um exercício teatral em torno do esquecimento: pede aos alunos que esqueçam a si mesmos e se coloquem no lugar de outra pessoa. É a senha para o seu próprio drama com o pai. O velho estudioso está vivendo um processo regressivo. Um descuido da filha permite que ele se perca na cidade, encantado com um elefante que vê na rua. Ele se põe a seguir o elefante e seu dono, passando por situações diversas entre a exploração e a compaixão. Curiosamente, ele esqueceu quase tudo, exceto as citações filosóficas (shlokas) em sânscrito, o que faz com que populares o tomem ora por um homem santo, um guru, ora por um velho que voltou a ser criança. Essa dualidade  não é estranha à figura do popularíssimo deus Ganesha, representado por uma espécie de bebê com cabeça de elefante. Este, por sua vez, é um animal comumente associado à memória.

As citações de “Appa” (o pai, magnificamente interpretado pelo venerando ator Mohan Agashe) e algumas conversas entre outros personagens abrem espaço para os conceitos que a história pretende discutir dramaturgicamente.  Se o presente é a única verdade, tudo no mundo é impermanência, ideia comumente difundida pelo taoísmo. “Astu, astu…”, repete o velho, usando uma expressão que equivale a “assim seja”. A aceitação profunda dos fatos, mais que a perda das faculdades mentais, é o que o leva em sua aventura no rastro ou no lombo do elefante. No fundo, é uma maneira de ver a limitação da doença como um dado natural e inevitável da vida.

Os reflexos na família é que não cabem na cartilha da pura filosofia. Através de flashbacks da memória da filha (mais uma vez a memória) somos apresentados à evolução da enfermidade e às questões trazidas para os familiares. Velhas desavenças e suspeitas vêm à tona, assim como preconceitos e diferenças de percepção sobre como encarar o assunto. Em alguma medida, isso se assemelha a dramas familiares de Ozu, apesar da eventual ameaça do sentimentalismo e do mensagismo explícito e um tanto solene.

Cavalgando nos Sonhos, de Girish Kasaravalli, é mais modesto em termos de produção e nível artístico, mas promove uma imersão do espectador no universo rural do estado de Karnataka, sudoeste da Índia. A história se desenvolve em torno de duas classes sociais ou castas distintas em suas relações com o dinheiro e a terra. De um lado, um miserável coveiro da tribo nômade Siddha e sua esposa, que faz trabalho semi-escravo para um pequeno proprietário. De outro, um velho senhor de terras em estado terminal e cuja família espera seu desenlace para vender as terras a uma fábrica que pretende se instalar no local.

A morte do velho significa uma fonte de rendimento para o humilde coveiro e também para a sua própria família, agora mais ligada à modernização industrial que às antigas estruturas rurais. Esse choque de interesses dá margem a situações dramáticas e cômicas, assim como a divertidas referências ao mundo dos sonhos e das crenças em gurus e divindades. A cultura religiosa indiana admite essas abordagens humorísticas, como a de um guru que se atrasa no atendimento a seus fiéis porque estava ocupado com comidas, bebidas e fumo.

Cavalgando nos Sonhos abre com uma famosa citação de Godard sobre a ordem entre princípio, meio e fim de uma história. Ela repercute em diversas cenas que se repetem com diferenças de ponto de vista e alguns adendos narrativos. Numa delas, por exemplo, o coveiro sonha que o velho moribundo havia morrido e se arroja para a casa dele na esperança de ter um trabalho remunerado. Mas, para seu desapontamento, todos na “casa grande” negam o óbito. Mais adiante, a sequência se repete e ficamos sabendo que a morte estava sendo escondida enquanto ocorriam as negociações da venda de terras.

O roteiro razoavelmente ambicioso contrasta com uma encenação naïf. O filme tem a seu favor, ainda, uma bela fotografia noturna e uma trilha sonora imersiva.

A revelação desses universos e etnografias supostamente exóticos, no fundo, tem paralelos interessantes com a cultura afrobrasileira e nordestina. Carina Bini tem planos de trazer sua mostra ao Rio de Janeiro. Estou na torcida para que consiga.

Deixe um comentário