Para começo de conversa, cabe dizer que a imagem do deficiente visual no cinema costuma ser deficiente. Existe uma dificuldade básica em caracterizar o personagem cego nos parâmetros do drama, embora a comédia dramática possa ter picos como Luzes da Cidade e Perfume de Mulher (o italiano e o americano). E quando os filmes se propõem representar a própria deficiência visual através de imagens, aí não há efeito ótico que dê conta.
Estão em cartaz dois filmes com esse tema: o brasileiro Teu Mundo Não Cabe nos Meus Olhos e o japonês Esplendor. No primeiro, um pizzaiolo cego (Edson Celulari, coprodutor do longa) é instado pela mulher (Soledad Villamil, de O Segredo dos Seus Olhos) a fazer uma operação para recuperar a visão. O resultado, muito parcial e precário, o leva a arrepender-se e a descobrir que a vida era bem melhor na escuridão. No segundo, um fotógrafo está perdendo rapidamente a capacidade de enxergar e vê sua vida se desmoronar. Mas aqui a personagem central não é ele, e sim uma redatora de audiodescrições para filmes que, fascinada pelo seu ofício, toma-se de interesse pelo moço.
A visão indesejada
Teu Mundo Não Cabe nos Meus Olhos, dirigido pelo gaúcho Paulo Nascimento e ambientado no Bexiga paulista, veicula o estereótipo do cego feliz, entusiasmado com tudo o que ouve e sente (no que Celulari não poupa exageros de expressão). A tentativa de combinar melodrama e comédia, consternação e alto astral, resulta desajeitada, com diálogos cheios de pausas medidas, música soporífera e direção careta.
O argumento não escapa do clichê da norma invertida: o cego rejeita a visão, que lhe trará mais frustrações que felicidade. A diferença entre ver e sentir é reiterada diversas vezes pela máxima de que “sentir é ver por dentro”. Para o nosso pizzaiolo, talvez a descrição que o amigo garçom lhe faz das mulheres seja melhor do que a verdade visível. E por aí ficamos com um rascunho de parábola sobre os benefícios da privação.
A difícil tradução
Naomi Kawase também incorre em chavões do gênero no seu Esplendor. O fotógrafo afirma que vê melhor quando não olha para as coisas com seu resquício de apreensão visual. A redatora de audiodescrição, por sua vez, considera que “o fotógrafo é um caçador cuja presa é o tempo”. E por aí vamos com as obviedades de praxe. Mas Naomi enxerga mais longe ao abrir seu leque para uma reflexão poética mais ampla sobre o desaparecimento das coisas.
Se o mundo está perdendo a forma aparente para o fotógrafo, para a moça é a família que vai perdendo os contornos. O pai desapareceu há muito, a mãe está se afastando na nuvem do Alzheimer. Habituada a descrever o que vê e por onde passa, ela procura no seu ofício uma maneira de reter a aparência – quiçá a essência – das coisas. Nisso ela tem um desafio perante os cegos com quem pratica a técnica da audiodescrição. Precisa encontrar o ponto justo entre a sugestão eficaz do que se passa na tela e a restrição necessária para que a audiência possa exercitar sua própria imaginação. O fotógrafo está entre eles, e é um dos mais críticos ao trabalho dela. Daí nasce um vínculo ao mesmo tempo de afeto e objeto.
Pela via das metáforas, Esplendor acaba insinuando um pensamento sobre a complexa relação entre imagens e palavras. Sobre a difícil tradução de umas pelas outras. Afinal, que descrição seria capaz de transmitir as inefáveis potências da imagem, seus enquadramentos, suas intensidades de luz e de volume, suas afecções indescritíveis? No fundo do seu draminha meio açucarado, Naomi Kawase semeia essas ideias um pouco mais sofisticadas, enquanto acaricia o espectador com sua delicadeza audiovisual, seus filtros e suas epifanias de luz.
Bem, ambos os filmes caem na esparrela de delinear o ponto de vista do quase cego. São as imagens desfocadas ou deformadas de sempre. Mais uma vez, o intraduzível.
P.S. Está em cartaz, ainda, a pífia comédia alemã De Encontro com a Vida, história (supostamente real mas completamente inverossímil) de um rapaz que consegue dissimular sua grave deficiência visual como garçom de um grande hotel. Além de fazer piadas com a cegueira, o filme de Marc Rothemund ainda rasteja na fórmula cansada da meritocracia e da busca do “sonho” profissional.
Oi Carlos, não vi nenhum dos filmes, mas o filme japonês me parece bem interessante em sua abordagem. A questão da transposição das imagens para palavras (se isso é possível) e a relação entre essas duas linguagens. Certa vez, o grande Shohei Imamura quando perguntado sobre o que era A Balada De Narayama respondeu que se pudesse dizer em palavras, não teria feito o filme. É claro que foi radical e se refere a outras instâncias também do que a mera transposição de imagens em palavras.
Me lembro de um dos melhores filmes que vi sobre a cegueira que é o Janela da Alma, do Walter Carvalho. Não vejo problema em querer representar a cegueira, cinema é representação. Creio que Meirelles e Charlone fizeram um trabalho imagético bem interessante na adaptação do livro de Saramago cujo título você parodia no seu texto. Um abraço
Querido Roberto, certamente a representação tem todas as suas licenças, mas também suas limitações. No caso presente, eu quis ressaltar o déficit irremediável que fica entre representação da cegueira e experiência da cegueira. Assim como a relativa impossibilidade de “representar” imagens por palavras, que é o tema do filme. No caso do filme do Meirelles/Saramago, não me lembro que haja uma representação direta da deficiência visual. Abração