Uma grande viagem pelo cinema ambiental

Safári, de Ulrich Seidl, abre a Mostra Ecofalante com seu olhar impiedoso sobre a espécie humana

Werner Herzog na Amazônia

Em sua sétima edição, a Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental começa nesta quinta-feira em São Paulo com um elenco de atrações de tirar o fôlego. Elas incluem uma retrospectiva com 18 filmes de Werner Herzog, uma mostra-homenagem a Chico Mendes nos 30 anos de sua morte, uma competição latino-americana com 28 títulos e um Panorama Internacional com filmes inéditos no Brasil de Jia Zhang-ke, Ulrich Seidl, Wang Bing, Julian Temple e da dupla D. A. Pennebaker+Chris Hegedus, entre muitos outros.

A programação inclui ainda uma competição de produções socioambientais de escolas e cursos audiovisuais, sessões infantis, o Programa Ecofalante Universidades e a Mostra Escola, ambos voltados à exibição e à discussão em espaços educacionais. E ainda um Seminário de Cinema e Educação e dois workshops: “A Prática do Cinema Documental”, com Jorge Bodanzky, e “O Audiovisual na Sala de Aula”, com Edson Grandisoli. Ocupando 82 salas de cinema e espaços culturais e educacionais de São Paulo, o evento celebra a Semana Nacional do Meio Ambiente e o Dia Mundial do Meio Ambiente (5 de junho) com todas as exibições gratuitas.

A programação completa pode ser consultada no site da mostra.

Um dos eixos temáticos mais fortes este ano diz respeito à preservação do reino animal. Cinco documentários ocupam-se do assunto: Safári, de Ulrich Seidl, Alforria Animal (Unlocking the Cage), do casal Chris Hegedus e D. A. Pennebaker, Troféu, de Christina Clusiau e Shaul Schwarz, As Estações, de Jacques Perrin e Jacques Cluzaud, e Triste Oceano, de Karina Holden.

Dois deles, que já vi, se colocam em polos opostos da preservação. Safári sai no encalço de caçadores (alemães ou austríacos) em ação na África e tem lançamento comercial previsto para junho. Alforria Animal, por sua vez, acompanha um advogado empenhado em reivindicar cidadania legal para chimpanzés, elefantes e golfinhos.

Caçadores caçados

Safári é mais um exemplo do cinema impiedoso do austríaco Ulrich Seidl. Eis um cineasta desprovido de qualquer pejo para exibir a miséria humana – especialmente a europeia – em suas diversas acepções. Esse último filme conversa de viés com outros dois trabalhos seus: o ficcional Paradise: Love, em que uma cinquentona austríaca viaja ao Quênia em turismo sexual, e o documental Amor Animal, sobre relações excêntricas entre pessoas solitárias e seus animais de estimação. Safári mostra casais e famílias que admiram profundamente os animais selvagens africanos. Ao ponto de matá-los.

Em campos de caça da Namíbia e da África do Sul, turistas ricos se divertem atirando em zebras, girafas, impalas, gnus e outras espécies em vias de extinção. O objetivo não é a captura, mas o abate puro e simples, seguido da orgulhosa fotografia ao lado do bicho morto e, quiçá, da decapitação para fazer um troféu. Enquanto eles saem com seus rifles poderosos à espreita da caça, Seidl os captura com sua câmera. A operação cria uma linha de continuidade entre as duas espécies “caçadas”. De volta ao alojamento, os caçadores conversam sentados lado a lado diante de uma câmera frontal que os enquadra como os demais animais empalhados na parede por trás. O desprezo do diretor por seus personagens frequentemente repulsivos transparece nesse tipo de tratamento cru, distanciado e ao mesmo tempo irônico.

E o que eles falam? Comentam os preços dos distintos animais no mercado, discutem as melhores armas e munições para furar o couro de uma girafa, enumeram justificativas para seu passatempo (“ajudamos a propagação das espécies”), analisam as emoções que precedem e sucedem o tiro “limpo”, aquele que atinge o coração e mata mais rápido. Estamos diante de uma patologia predatória, na qual uma eventual culpa – se existe – é logo dissolvida em afagos e elogios ao animal recém-fuzilado.

Safári é um filme chocante e perturbador em cada um de seus movimentos. Perturba com o cruel regozijo dos caçadores e suas conversas absurdas. Choca com as cenas de caça, animais agonizantes e o impressionante descarnamento de uma girafa. Ulrich Seidl não observa limites quando se trata de expor atrocidades e as mentalidades indigestas que as produzem.

No contexto da exploração da África, o racismo também ganha destaque através de comentários preconceituosos dos turistas europeus. Os empregados nativos cortejam os brancos em suas “aventuras”, depois encarregam-se do trabalho sujo nos bastidores e são autorizados a levar para casa as partes menos nobres dos animais. A eles Seidl também dirige seu olhar instigador, fazendo com que posem para a câmera comendo como selvagens. É quando o cineasta, ao fingir esposar um ponto de vista etnocêntrico, passa do lugar de observador implacável para o de provocador ambíguo. Quem pensar em Sérgio Bianchi está no caminho certo.

As declarações que talvez resumam melhor a “mensagem” de Safári são as do proprietário do Leopard Lodge, perto do final: “Proteger os animais a qualquer custo não faz sentido. A Natureza está sobrecarregada. Mas ainda pior do que os animais é a espécie humana. Tem gente demais. Se desaparecêssemos, seria melhor para o mundo.” Diante do que mostra esse filme, a gente tende a concordar.

Habeas corpus para chimpanzés

No extremo oposto de Safári está Alforria Animal. Para o advogado Steven M. Wise e suas três assistentes, animais como macacos, golfinhos e elefantes têm cultura própria, memória e capacidade de discernimento suficientes para serem considerados “pessoas não humanas” perante a lei. Durante dois anos, Pennebaker e Hegedus filmaram suas batalhas junto à imprensa e aos tribunais para obter habeas corpus em benefício de chimpanzés enjaulados em universidades, zoológicos, armazéns privados e falsos santuários onde eram mal tratados.

Se empresas americanas, um rio da Nova Zelândia e um livro sagrado na Índia já mereceram status legal comparável ao de seres humanos, por que não animais especialmente inteligentes como os macacos, elefantes e golfinhos? Em sua argumentação, Wise alega que esses bichos não são propriedade de ninguém e devem merecer os mesmos benefícios legais atribuídos a crianças ou escravos: autonomia e liberdade.

O advogado obteve sua primeira vitória parcial em 2015, e a luta continua. Uma luta que tem muito de simbólica e socialmente polêmica. Alforria Animal documentou sua atuação em várias instâncias e a repercussão interna na pequena equipe. Dá conta de uma saga simpática e algo quixotesca, mas que põe em xeque barreiras científicas e sociais profundas, estendendo tanto quanto possível o conceito de proteção dos animais.

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