Vladimir, homem-documentário

A Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais vai homenagear o documentário nacional na cerimônia de entrega do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, nesta quarta-feira (23/8). Vladimir Carvalho foi merecidamente escolhido para receber a homenagem, personificando o melhor do documentarismo em nosso país. Na ocasião, os convidados da festa receberão uma edição especial e atualizada do livro Pedras na Lua e Pelejas no Planalto, que fizemos juntos em 2008.

Naquele ano, aproveitando estadas de Vladimir no Rio, sentei-me com ele para revermos juntos vários de seus filmes e gravamos 28 horas de entrevistas sobre sua trajetória de vida e cinema. O livro é narrado por ele em primeira pessoa e fez parte da saudosa Coleção Aplauso, editada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. A edição original de 2008 encontra-se disponível para download gratuito em PDF aqui.

Junto a Eduardo Coutinho, Silvio Tendler, Sylvio Back e Jorge Bodanzky, Vladimir Carvalho representa uma geração que consolidou o documentário moderno no Brasil. Como destaco na introdução do livro, Vladimir foi um dos protagonistas de dois momentos importantes do cinema documental no país. Ainda jovem, como corroteirista e assistente de direção do seminal Aruanda, de Linduarte Noronha, e codiretor do flahertiano Romeiros da Guia, inscreveu-se no célebre surto do documentário paraibano, uma das seivas que nutriram o Cinema Novo. Seu primeiro longa-metragem, O País de São Saruê, em que pese a defasagem de seu lançamento por causa de longa interdição da censura, pode ser tomado como uma extensão natural daquele ciclo, junto com os curtas A Bolandeira e A Pedra da Riqueza.

Mais tarde, ao se estabelecer em Brasília, às vésperas do 10º aniversário da capital federal, Vladimir estimulou decisivamente a primeira grande floração de um legítimo cinema brasiliense – do qual viria a se tornar uma espécie de patrono. Também aí prevaleceu um movimento pendular entre a cidade nova e a ancestralidade nordestina, o concreto armado e a natureza sertaneja. Se Conterrâneos Velhos de Guerra revela, qual tinta num relevo, a nordestinidade de Brasília, filmes como Vila Boa de Goyaz, Quilombo e Paisagem Natural localizam no sertão goiano mais uma encarnação da veia telúrica do realizador.

O diretor de fotografia Manuel Clemente e Vladimir nas filmagens de “O País de São Saruê” (foto: Walter Carvalho)

Nas quase cinco décadas compreendidas entre Vestibular 70 (1970) e Cícero Dias, o Compadre de Picasso (2016), ele voltou a filmar algumas vezes no Nordeste e documentou incessantemente a vida política do Distrito Federal, sempre em estreita colaboração com os colegas professores e os alunos da Universidade de Brasília.

Cabe, por exemplo, lembrar que Vladimir Carvalho é um inaugurador de veredas no documentário brasileiro. Em seu mix de admirações, há lugar para o “ficcionalizante” Robert Flaherty, o experimental-reflexivo Dziga Vertov, o poético-político Joris Ivens e o lírico Humberto Mauro. Vale dizer: algumas das principais tendências que levaram esse tipo de cinema a se afastar do mero registro da realidade.

Muito antes que a metalinguagem se instalasse na sala de visitas do documentário contemporâneo, nos idos de 1971 já a equipe de filmagem invadia a cena em O País de São Saruê, mesclando os procedimentos de evidência documental e reconstituição ficcional. Em Mutirão (1976), a presença da equipe era enfatizada como parte de uma crítica do diretor à intervenção da classe média consumidora numa comunidade de artesãos tradicionais. Dispositivo igualmente inovador foi o recurso a comentários de terceiros, capazes de atribuir uma nova camada de sentido a materiais filmados em outra época. Assim, o que vemos em A Pedra da Riqueza (1975) e Brasília Segundo Feldman (1979) é, entre outras coisas, uma antecipação das futuras faixas comentadas dos DVDs.

A inquietação formal que anima a estrutura narrativa de Saruê, a experimentação tonal de Vestibular 70 ou o tratamento sonoro de A Pedra da Riqueza, apenas para ficar em alguns exemplos, afastam a obra de Vladimir de qualquer semelhança com o cinejornalismo e a projetam para a esfera do ensaio documental.       

O trabalho do diretor caracteriza-se também por uma criativa reapropriação de materiais de arquivo, com os quais elabora uma complexa, embora cristalina, escrita de imagens. Típica dessa maestria é a maneira como ele reconfigurou as cenas filmadas por Eugene Feldman em Brasília Segundo Feldman; ou como construiu novas camadas de sentido para as imagens da história de Brasília em Conterrâneos Velhos de Guerra. Consciente do princípio básico de que uma imagem cinematográfica só ganha sentido quando articulada com outras imagens e com uma faixa sonora, ele adotou a edição crítico-dialética como ferramenta principal.

Aos 88 anos, Vladimir ainda luta para encontrar uma instituição que adote a sua Fundação Cinememória, que reúne um vasto acervo de documentos, equipamentos e memórias do cinema de Brasília coletados por ele nos últimos 52 anos. A Cinememória bem podia ser o germe de uma Cinemateca local, persistente desejo da classe cinematográfica brasiliense.

Mostra no Canal Brasil

Também na quarta-feira, 23/8, o Canal Brasil vai fazer uma maratona Vladimir Carvalho a partir das 12:30 com uma edição especial do Cinejornal; o programa Cineastas do Real, com Vladimir e Amir Labaki; e os filmes O País de São Saruê, Rock Brasília e Quando uma Coisa Vira Outra, este sobre Vladimir e seu irmão Walter.

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