Festival do Rio 2023: Arte da Diplomacia

Modernistas contra o nazifascismo

Não é toda hora que topamos com um documentário tão original, bem pesquisado e bem realizado como Arte da Diplomacia. Organizo minha resenha em função dessas três qualidades:

1. Original

Afora a cobertura jornalística da exposição alusiva em 2018, pouca gente conhecia a história da exposição original de 1944, em que 168 obras de artistas modernistas brasileiros foram doadas por seus autores e suas autoras para o esforço de guerra contra o nazifascismo. Após a mostra na Royal Academy de Londres e em mais sete cidades inglesas, as pinturas e desenhos foram leiloados em benefício da RAF, a Força Aérea britânica, ou destinados a museus e galerias europeias, principalmente do Reino Unido. A iniciativa, coordenada por Augusto Rodrigues e outros, junto a Oswaldo Aranha e à representação diplomática brasileira, visava também reposicionar a imagem do Brasil e internacionalizar a arte produzida aqui.

Artistas como Portinari, Burle Marx, Tarsila, Segall, Rebolo, Djanira, Di Cavalcanti, Heitor dos Prazeres e muitos outros tinham telas expostas na ocasião. Consta que até a Rainha Mãe visitou a exposição. O destaque dado então à arte modernista representava um desagravo perante sua condenação por Hitler como arte degenerada.

Arte da Diplomacia retira de um relativo obscurantismo esse episódio cheio de ressonâncias estéticas e políticas. Investiga a relação dos artistas com o contexto político da II Guerra e traz o assunto até a realidade de hoje, quando o fascismo brasileiro ataca diretamente as obras de arte, como vimos nos palácios de Brasília durante o 8 de janeiro de 2023. Ou seja, o prolífico e cuidadoso diretor Zeca Brito “cerca” todos os aspectos do assunto numa visão ao mesmo tempo ampla e profunda.

2. Bem pesquisado

Zeca fez um périplo por instituições brasileiras e inglesas, além de ateliers e casas de colecionadores para levantar o destino de muitas das obras e as histórias por trás da exposição de 1944. Visitou a carismática crítica de arte e curadora Aracy Amaral, cuja intimidade com os pintores gera ótimos momentos de entrevista. Com curadoras britânicas encontra não só relatos de fascinação e curiosidade pelos quadros brasileiros, mas também confissões de total desconhecimento da nossa arte. De uma colecionadora brasileira testemunha um proverbial desinteresse pelo aspecto político das pinturas que tem em casa.

Algumas revelações sobre os modernistas são particularmente curiosas. A figura de Lucy Citti Ferreira, por exemplo, salta aos olhos da maioria de nós como uma descoberta, muito em função de ela ter se formado e produzido sobretudo na Europa. Carlos Scliar foi o único a comparecer nas duas frentes do esforço de guerra: como pintor e como soldado no front italiano. José Cardoso Jr., o “Cardosinho”, considerado naïf, foi um dos que tiveram seu quadro adquirido em Londres, sendo o primeiro brasileiro a integrar o acervo da Tate Gallery.

A pesquisa de Hayle Melim Gadelha e Clara Marques não se limita a louvar o projeto de 1944, mas também sonda suas contradições. Até que ponto as instituições britânicas estavam mesmo interessadas em receber as obras de um país até então obscuro artisticamente como o Brasil? Que status as obras remanescentes na Europa desfrutam hoje dentro dos respectivos acervos? Em que medida aquela iniciativa de soft power avant la lettre repercute ainda hoje nos imaginários inglês e brasileiro? Coisas a perceber nas linhas e entrelinhas de Arte da Diplomacia.

3. Bem realizado

Um trabalho de câmera sempre elegante de Bruno Spolidoro nos leva a percorrer museus, reservas técnicas, galerias, palácios e casas de colecionadores, pontuando uma certa relação entre pintura e arquitetura. Nos palácios do Itamaraty e do Planalto, em Brasília, as obras de arte espalhadas por suas salas e saguões atestam os vínculos almejados entre poder e arte, ao mesmo tempo que exprimem uma vocação subsidiária da diplomacia para as artes.

Enquanto esquadrinha esses aspectos, o filme nos oferece um passeio sedutor por aqueles espaços onde a museografia se apresenta ora como fundamento, ora como índice de enobrecimento ou mesmo de riqueza.

Em termos estéticos, o único senão, a meu ver, são as variações de foco nos detalhes das telas. Com a provável intenção de destacar certos pormenores, esse maneirismo apenas prejudica a fruição daquilo que pretende mostrar.

É preciso realçar, ainda, o jeito cativante, provocativo ou levemente excêntrico da maioria dos entrevistados. Isso produz um teor de entretenimento para além da originalidade do tema – e certamente é fruto de uma aproximação habilidosa do diretor.

09/10/2023 – Estação NET Rio 4 – 19:00
13/10/2023 – Estação NET Gávea 2 – 16:20
15/10/2023 – Estação NET Rio 3 – 14:00

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Um comentário sobre “Festival do Rio 2023: Arte da Diplomacia

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