SAMBALANÇO, A BOSSA QUE DANÇA e TRALALA no streaming
Tempos de skindô e teleco-teco
A gente sabe que a música popular brasileira se divide entre ABN e DBN, ou seja, antes e depois da Bossa Nova. Mas pouca gente se lembra de que, em paralelo ao banquinho-e-violão, havia uma corrente musical que fez o Brasil inteiro dançar. Era o sambalanço, onde pontificavam as composições suingadas de Orlandivo, o órgão de Ed Lincoln, a bateria de Wilson das Neves, a picardia de Paulo Silvino, a voz anasalada de Miltinho, a exuberância vocal de Elza Soares, o tino artístico-empresarial de Durval Ferreira, e por aí adentro.
Essa turma foi revisitada no documentário Sambalanço – A Bossa que Dança, de Fabiano Maciel, com roteiro e narração do craque Tárik de Souza, autor de um livro sobre o tema. O filme nos leva de volta à época dos bailes, chás dançantes, boates e mesas de bar onde o skindô e o teleco-teco corriam soltos. Se a Bossa Nova botava as pessoas quietinhas para ouvir, o sambalanço as fazia levantar para sacudir os ossos.
Entre histórias divertidas e informações preciosas, vemos alguns titãs do sambalanço se apresentarem, já idosos, num show do CCBB-Rio em 2003. E também uma nova geração que redescobriu e seguiu os passos malemolentes do gênero. Sambalanço preenche uma lacuna na historiografia da MPB moderna e reativa a memória de quem viveu os anos 1960 mas esqueceu parte do que ouviu.
>> Sambalanço – A Bossa que Dança está nas plataformas Globoplay, Vivo Play e ClaroTV.
Milagres de Lourdes
Milagres podem ser meras coincidências, projeções do desejo ou simples alucinações. O que acontece com Tralala é tudo isso junto. Ele é um cantor de rua à beira da condição de sem-teto. Canta em frente à Opera ou a estações de trem de Paris. Um dia, diante da Gare de Montparnasse, uma jovem misteriosa lhe aparece para dizer pouco mais que “Sobretudo não seja você mesmo”. Em seguida, desaparece, deixando para trás um isqueiro com a imagem da Virgem de Lourdes.
Para o desafortunado cantor, isso soa como uma epifania. Ele parte para Lourdes na esperança de reencontrar a moça, cujo nome não será nada menos que Virginie (Galatéa Bellugi). Se até aqui a história lhe parece uma bela bobagem, a impressão não está errada. Falta saber se essa bobagem poderá eventualmente entreter e até mesmo seduzir aqui e ali.
Mathieu Amalric, com seu jeito sutil de parecer surpreso e desamparado, é um trunfo valioso para os irmãos Arnaud e Jean-Marie Larrieu, que escreveram e dirigiram Tralala. São divertidas as andanças do protagonista pelos signos da devoção a Lourdes, onde abundam referências kitsch ao azul da Virgem, e freiras, enfermeiras e padres podem entrar no modo canto e dança quando menos se espera. Um humor levemente surrealista tempera o caldo morno da historinha até que Tralala encontra seu destino: a dona de um abrigo o toma por seu filho desaparecido há 20 anos, um certo Pat Rivière, que parece mesmo ter algumas coisas em comum com ele.
É assim que Tralala vira Pat e se vê com uma casa, uma mãe (Josiane Balasko), um irmão alcoólatra e frustrado (o roqueiro Bertrand Belin, autor de parte das canções do musical), dois sobrinhos rappers e dois amores do passado (a atriz e diretora Maïwenn e a bardotiana Mélanie Thierry). A trama vai ganhar contornos de melodrama familiar, em especial para os personagens que embarcam na farsa endossada desajeitadamente por seu principal beneficiário.
Cinco autores assinam diferentes canções, tratadas ora como performances musicais, ora como dramaturgia cantada, à moda de Jacques Demy. Bem longe do melhor nesse gênero, diga-se de passagem. A maior parte das músicas – muito características da chanson francesa atual – tem a animação de um fim de festa, com letras desconectadas da trama. Por um momento, ouvimos no background Milton Nascimento cantar Aqueles Olhos Verdes, em mais uma alusão desencontrada. As coreografias, assinadas pela célebre Mathilde Monnier, são desenxabidas. Mas é justamente nesse descompromisso com os padrões do espetáculo, nessa brincadeira “sem noção” que o filme encontra seus momentos de um certo charme.
Numa boa cena, uma das ex-namoradas de Pat beija Tralala e desconfia da língua mais grossa do farsante. Mesmo assim, passa a curtir o novo barato. Talvez funcione desse jeito com parte da plateia: a gente não acredita no que está vendo, a língua parece grossa, mas acaba gostando do flerte.


