Babel indígena

O CONTATO

Quem quiser ter um contato sintético com a diversidade do Brasil indígena pode visitar o município de São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, estado do Amazonas. A região abriga nada menos que 23 etnias, que falam 19 línguas, sendo três delas consideradas oficiais, junto com o português. Essa babel se reflete também em relações complexas entre as próprias etnias, como casamentos interétnicos e eventuais tensões de parte a parte.

Esse documentário dirigido por Vicente Ferraz (Soy Cuba, o Mamute Siberiano, A Estrada 47) a partir de argumento de Juliana de Carvalho (também produtora do filme) e Mara Junqueira penetra com habilidade naquele universo razoavelmente desconhecido pelo público geral. O título O Contato tem aqui um sentido largo. Refere-se não só aos contatos com os brancos, relembrados – e eventualmente lamentados ou rejeitados – pelos indígenas, mas também ao convívio de povos diferentes numa dinâmica de trânsitos familiares.

O eixo da narrativa são três viagens, duas das quais por um breve – e belo – momento se cruzam no rio. Uma professora da etnia Arapaço sai em direção a São Gabriel da Cachoeira para visitar a filha, que se encontra internada com uma depressão mórbida. No caminho, visita a missão religiosa onde estudou no passado. Outra família se desloca em direção à aldeia original da mãe, da etnia Hubda, levando o filho e o marido (um Baniwa) para conhecerem a avó materna depois de 12 anos morando longe. Um grupo de yanomamis leva para sua aldeia um lote de fotos e filmes dos parentes feitos por “brancos”.

Além dessas viagens protagonistas, o filme recolhe também lembranças e impressões de yanomamis, tukanos e hubdas a respeito dos contatos com os brancos, a variedade de idiomas e os preconceitos que existem entre algumas etnias. Os hubdas, por exemplo, costumam ser vistos como inferiores por indígenas de outros grupos.

Tendo contado com a colaboração do indigenista Bruno Pereira, assassinado em 2022 e a cuja memória o filme é dedicado, O Contato consegue enfocar ângulos pouco divulgados da vida indígena no Amazonas. Há relatos de doenças, suicídios e mortes causadas por discriminação étnica. Algumas reflexões sobre o estar no mundo sugerem uma espécie de existencialismo indígena.

Por sua vez, a diversidade linguística aparece em sala de aula, numa missa católica em idioma tukano e na própria pluralidade das falas e diálogos. Uma mulher hubda fornece uma bela alternativa para o episódio bíblico da Torre de Babel: “Acho que Deus trocou nossas línguas quando surgimos, por isso temos tantas”. E completa: “Se Deus só fala português, Ele se esqueceu de nós”.

Grande parte do documentário se faz na base da observação de diálogos e alguns rituais, sem intervenção direta de um entrevistador. Isso fornece uma aproximação mais íntima dos falares e do gestual dos personagens. As imagens de Luiz Abramo são belíssimas e trazem a marca de quem sabe colocar a câmera no lugar certo para obter enquadramentos ricos e sugestivos, seja nas interações pessoais, seja nos trajetos do river movie.

Eis uma abordagem engenhosa de heranças culturais sendo ameaçadas e resistindo à saga dos contatos de todo tipo.

Uma curiosidade que me ocorreu: a narrativa fundadora dos Arapaço sobre o “Buraco da Transformação”, de onde todos os homens teriam saído, pode dialogar com a “origem do mundo”, segundo o famoso quadro de Gustave Courbet.

>> O Contato está nos cinemas.

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