O país de Vladimir

O Brasil empobrece um bocado sem o olhar de Vladimir Carvalho. Ao que se sabe, depois de sofrer um infarto e ser internado em 5 de outubro, Vladimir teve paralisação dos rins e veio a falecer na manhã de hoje, 24/10, aos 89 anos. A surpresa é grande, uma vez que, ao vê-lo há cerca de dois meses, ele me parecia gozar de boa saúde depois de se recuperar de sequelas da Covid-19.

Nos últimos tempos, seu maior empenho era em dar uma destinação digna ao acervo reunido desde os anos 1990 na sua Fundação Cinememória, em Brasília. Livros, documentos, equipamentos e memorabilia do cinema nordestino e brasiliense vinham sendo conservados por ele particularmente, na esperança de que isso fosse a semente de uma futura Cinemateca de Brasília. Já que não obteve o engajamento de nenhuma instituição enquanto estava vivo, esperamos que com sua morte o sonho se realize.

O sertão nordestino e o cerrado do Brasil Central compunham a geografia da obra de Vladimir. Ali se encontram vários diálogos entre as duas regiões, seja a partir dos imigrantes que ajudaram a construir Brasília – retratados no clássico Conterrâneos Velhos de Guerra –, seja através da busca de semelhanças na paisagem natural e cultural.

Foto: Mila Petrillo

Nascido em Itabaiana, na Paraíba, Vladimir inspirou-se na perícia do pai para também esculpir e criar obras gráficas, como as capas de seus livros. A opção por combater as desigualdades sociais surgiu cedo, com sua filiação ao Partido Comunista Brasileiro. Participou do alvorecer do documentário brasileiro moderno como corroteirista de Aruanda, ponto de partida de sua longa carreira de documentarista. Já em seus primeiros filmes, arregimentou para o cinema o irmão Walter Carvalho, então fotógrafo e estudante de desenho industrial.

A censura o castigou com a proibição de O País de São Saruê. A dificuldade em conseguir recursos para seus filmes o acompanhou por toda a vida, razão pela qual as produções se arrastavam por anos antes de se darem por prontas. Radicado em Brasília a partir de 1969, tornou-se uma espécie de patrono do cinema brasiliense, seja fazendo seus filmes, seja como professor da Universidade de Brasília. Ali formou toda uma geração de cineastas dedicados principalmente ao documentário.

A obra de Vladimir é um compêndio de invenções formais na linguagem documental, muito embora largamente baseadas na sua presença em cena como interlocutor e instigador de memórias. Seus documentários são frequentemente fertilizados pela música e pela poesia. Conterrâneos Velhos de Guerra, por exemplo, ele próprio classificava como “uma ópera pobre”. O uso criativo de materiais de arquivo é outro ensinamento que ele deixa para quem segue seu ofício.

O enfoque do homem comum, do trabalhador e do camponês divide espaço em sua filmografia com os perfis de grandes brasileiros como José Américo de Almeida (O Homem de Areia), José Lins do Rêgo (O Engenho de Zé Lins), Teotônio Villela (O Evangelho Segundo Teotônio), Cícero Dias (Cícero Dias, o Compadre de Picasso) e Giocondo Dias (Giocondo Dias – Ilustre Clandestino).

Tive oportunidade de usufruir bastante do carisma pessoal de Vladimir e de mergulhar a fundo em sua obra quando, em 2007/2008, fizemos juntos o livro autobiográfico Vladimir Carvalho – Pedras na Lua e Pelejas no Planalto. Recentemente, numa homenagem a sua carreira, a Academia Brasileira de Cinema editou uma versão atualizada do livro, cujo PDF pode ser acessado aqui.

A ausência desse mestre e amigo se fará sentir por muito tempo em toda a comunidade cinematográfica brasileira. O “cabra” nos deixa, mas seus filmes e sua memória já têm sobrevivência garantida entre nós.

5 comentários sobre “O país de Vladimir

  1. Belo texto, livro baixado. Do pouco contato que tive com Vladimir fica a lembrança de uma pessoa adorável e a de um grande documentarista que contou a história de Brasília do ponto de vista daqueles que a ergueram. Um abraço

  2. Belo texto, livro baixado. Do pouco contato que tive com Vladimir fica a lembrança de uma pessoa adorável e a de um grande documentarista que contou a história de Brasília do ponto de vista daqueles que a ergueram. Um abraço

Deixar mensagem para carmattos Cancelar resposta