Bonita pescaria num mar de imagens

AMIZADE

Este não é o primeiro documentário brasileiro que tem Amizade por título e tema. Em 2009, o saudoso Sérgio Muniz fez circular entre amigos um filme-ensaio composto de depoimentos especulativos em torno desse sentimento que o unia a Fernando Birri, Thomaz Farkas, João Silvério Trevisan, Marilena Chauí, Othon Bastos, Jean-Claude Bernardet e outros. A cada um, sem avisar previamente qual o tema da entrevista, Sergio pediu que falasse sobre a amizade.

Cao Guimarães usou o mote do isolamento social durante a pandemia da Covid-19 e de sua mudança para Montevidéu para se reconectar virtualmente com amigos de longa e curta data. Debruçou-se sobre materiais filmados em distintas fases de sua carreira, buscando traços e rastros de amizades e parcerias. Lá estão, entre outros, Beto Magalhães, que produziu e fotografou alguns filmes seus; Marcelo Gomes, com quem dirigiu O Homem das Multidões; Marcos Moreira e Nelson Soares, componentes do duo O Grivo, contraparte sonora de toda a obra de Cao. É curioso que a presença feminina seja tão pouco frequente.

Em gravações de bastidores nos mais diferentes suportes, conversas online, áudios e até mensagem de secretária eletrônica, eles interagem com o diretor não só em atos de criação, mas também em digressões sobre tempo, memória, morte, sonho e realidade. As vozes nem sempre estão sincronizadas com as cabeças falantes, o que lança o material para uma esfera meio atemporal. É bem verdade que as conversas às vezes “viajam” um bocado e correm o risco de ficarem cifradas demais. Mas a montagem logo as reintegra num fluxo sedutor.

Cao já fez filmes sobre abstrações como Espera, solidão e extinção. Amizade é uma bela ruminação poética em que ele reencontra, além dos amigos, a si mesmo. Lá estão as fulgurações líricas de microfenômenos como insetos, bolhas, fitas coloridas, gente que dança graciosamente ou serpenteia nua, como na bonita cena com Matheus Nachtergaele. Do pequeno, Cao costuma tirar o grande. “Somos pescadores com a vara enfiada pro lado de dentro”. Dessa pesca no seu próprio mar de imagens, mais uma vez sonorizadas por O Grivo, Cao retira um cardume de “peixes lindos e dourados”.

Amizade se aproxima de uma súmula do seu trabalho. Mas é também um convite a que nos acheguemos amigavelmente a um modelo de criação que combina um olhar afetuoso para o mundo e o desejo de experimentar.

>> Amizade está nos cinemas.      

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