É Tudo Verdade: Minha Terra Estrangeira

Olhares entrecruzados

Eis um filme que extrapola a si mesmo e faz as questões sobre ele serem tão ou mais interessantes que o filme em si. Numa visão objetiva e simplória, é um documentário sobre a campanha eleitoral de Almir Suruí e a militância indígena de sua filha Txai Suruí. São duas narrativas que correm em paralelo a partir de perspectivas diferentes.

O Coletivo Lakapoy, orientado pela cineasta branca Louise Botkay, acompanhou a campanha do cacique Almir, da nação Paiter Suruí, a deputado federal por Rondônia. Enquanto isso, João Moreira Salles filmava participações de Txai em eventos e protestos dentro e fora do Brasil. Em duas ocasiões, vemos as duas narrativas se encontrarem num mesmo espaço e tempo, mas em momentos diferentes do filme. O tempo, então, parece se descolar da linearidade habitual desses documentários de processo.

No debate após a sessão de domingo passado, no Rio, João, Louise e Ubiratan Suruí explicaram esse aparente descompasso. O filme foi montado e remontado por Laís Lifschitz, Eduardo Escorel e João Moreira Salles após consultas ao coletivo indígena. Constatava-se aí uma diferença fundamental entre as noções de tempo e sucesso político entre indígenas e não indígenas. Os parceiros Suruís não aprovaram a edição cronológica adotada inicialmente, que terminava com a vitória de Lula nas eleições de 2022.

Era preciso que os parceiros não indígenas se curvassem à opção dos indígenas, uma vez que era a história destes que estava em foco. Para eles, a derrota de Almir em Rondônia deveria ser a cena final. Uma derrota que continha, afinal, uma vitória, como diz Txai. Nesse sentido, é preciso lembrar de Eduardo Coutinho, para quem os finais apoteóticos não tinham vez.

Ainda assim, é uma tomada extraordinária de João Faissal que fica mais viva na memória: enquanto Txai e sua gente comemora o instante da confirmação da vitória de Lula no segundo turno, a câmera recua lentamente até chegar a uma rua de Porto Velho assustadoramente silenciosa. Num estado com ampla maioria bolsonarista – inclusive entre indígenas! –, a luta dos progressistas, como mais uma vez diz Txai, precisa ser em dobro. Uma cena rápida mostra Txai almoçando na praça de alimentação de um shopping center cercada de camisas verde e amarelas. “Essa gente nos odeia”, reconhece ela mais adiante. O título Minha Terra Estrangeira se refere a isso, entre outras coisas.

Em seu aspecto mais denotativo, o filme não foge muito ao padrão de similares sobre a causa indígena. No módulo “A História do Pai”, em modelo típico de documentário sobre campanha eleitoral, vemos Almir visitar diversas aldeias pedindo voto e, numa das cenas mais significativas, ouvir de um dos representantes das indústrias do estado que as terras indígenas estão em cima de áreas ricas em minério “de propósito” para barrar o desenvolvimento.

Na parte dirigida por João, “A História da Filha”, temos o ativismo de Txai na Escócia, em Nova York e no Brasil em encontro com Lula. Estamos com ela num carro que percorre terras devastadas dos Uru-Eu-Wau-Wau e testemunhamos o seu encontro com o muralista Mundano, que finaliza um mural retratando o ativista Ari Uru-Eu-Wau-Wau, assassinado em 2020.

Se esse material acaba ficando próximo de um certo lugar-comum, uma saída é apontada em conversa entre João e Txai sobre como fazer um filme sobre ela. Txai queixa-se de que os não indígenas só se interessam pelas lutas. A individualidade dela, seu cotidiano de jovem contemporânea e seus amores, por exemplo, não parecem ser assunto para um filme. João ouve e se cala, muito embora saibamos que a conversa foi mais longa. Um pouco desse dilema aparece em outro filme do festival, Mundurukuyü – A Floresta das Mulheres-peixe.

João e a Videofilmes produziram Minha Terra Estrangeira como uma variação do que haviam feito em Entreatos e Peões. Aqui, em lugar de observar uma campanha e investigar seus antecedentes, tratou-se de obter uma visão endógena da campanha de Almir, documentada por seus parentes, e uma interação entre um cineasta “externo” e uma personagem indígena. No cruzamento desses dois olhares, João procura avançar um pouco mais na metodologia dos documentários. Esse tem sido seu interesse em todos os filmes, desde Notícias de uma Guerra Particular.

No título Minha Terra Estrangeira também ressoa, portanto, uma inquirição sobre a alteridade, o lugar de fala e os impasses da cooperação entre dois modos de fazer e de pensar. Essa, talvez, seja a principal riqueza desse filme.

Um comentário sobre “É Tudo Verdade: Minha Terra Estrangeira

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