É Tudo Verdade: Bruscky: um Autorretrato

O artista como transeunte

Em seu encontro com o multiartista pernambucano Paulo Bruscky, Eryk Rocha parece seguir à risca um preceito de seu pai, Glauber Rocha: para tratar de assunto revolucionário, um filme deve usar uma linguagem revolucionária.

Tudo bem, vá lá que não seja propriamente revolucionária a forma adotada em Bruscky: um Autorretrato. Mas certamente está longe de ser um perfil careta. Para começar, não traz uma ficha informativa sobre o poeta, artista plástico e sonoro, performer, artivista e inventor poético. Quem quiser isso, vá pesquisar no Google. O que Eryk oferece é uma imersão na cabeça e no jeitão do cara.

Aos 76 anos, Paulo é visto em seus périplos habituais pelas ruas de Recife, fazendo pit stop num brechó para colher materiais para sua criação, num sebo para jogar conversa fora entre livros, num café e na mesa de um mercado, onde toma cerveja e pensa alto sobre um bocado de coisas. Um transeunte vivendo a cidade, assim como o personagem fictício de Eryk no seu longa Transeunte.

Bruscky é um transeunte também nas artes, do que dá mostra uma série de registros em Super 8 de sua trajetória entre modalidades diversas. Lá estão suas “coisas inúteis”, sua “gaveta de ideias”, suas “obras em compasso de espera (ou nunca!)”, seus inventos poéticos como a borracha de apagar sons de palavras ou a máquina de traduzir linguagem infantil. O que importa, para ele, é não ser rotulado. “Eu faço o que me vem”, define-se. E completa: “As únicas coisas que sei fazer são fazer e ver”.

Seu sonho é chegar o dia em que as pessoas saibam tanto ver, a ponto de que os artistas não sejam mais necessários para mostrar.

A fala de Paulo Bruscky é, em si, um ato de criação: pausas estranhas, conexões inesperadas e silêncios brutais. “Eu falo quando calo e calo quando falo”, explica. O tratamento sonoro do filme é tão inusitado quanto certas decisões da montagem de Caio Lazaneo. A ruidagem de pós-produção se acumula com os sons captados pelos microfones. Com frequência, a dissociação entre som e imagem cria ressonâncias e estranhamentos, o que vem somar à proposta de uma linguagem tão imprevisível quanto a do personagem.

Arte e política convivem no seu universo. No filme, ele fala sobre suas ações de resistência à ditadura com as mesmas firmeza e tranquilidade com que medita sobre doença e morte.

Eryk e Bruscky compartilham algo mais que as letras “r”, “y” e “k”. Nesse autorretrato mediado pelo cineasta, aflora uma política da arte. Como usar a expressão artística para gerar pensamento e surpresa. O filme não escapa a alguns excessos, como a atuação de uma cantora e a conversa de bêbados no mercado. E se a inquietação experimental domina a maior parte do tempo, é bonito ver Eryk dobrar-se à simples atenção, em câmera fixa, diante do fluxo de reflexões finais de Paulo sobre a fogueira que arde em sua cabeça. Uma amostra da força do pensamento maduro se impondo sobre a volúpia da fragmentação.

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