É Tudo Verdade: Histórias do Marco Zero

Gaza, onde sobreviver é uma surpresa

A arte é como uma flor capaz de germinar até nos terrenos mais pedregosos. Depois do que vimos no dilacerante Sem Chão, vencedor do Oscar de documentário, temos a chance rara de conhecer outro milagre cinematográfico produzido em meio ao genocídio que Israel está promovendo em Gaza. Histórias do Marco Zero (From Ground Zero: Stories From Gaza) reúne 22 minicurtas (entre 3 e 7 minutos) de cineastas residentes em Gaza.

O tema, é claro, é a sobrevivência do povo palestino e, muitas vezes, a dos próprios diretores. Como a autora do segmento Taxi Wanissa, que, ao ter parentes mortos, precisou interromper o documentário sobre um carroceiro e passar a cuidar de permanecer viva. O mesmo aconteceu com o diretor de Sorry, Cinema, que abandonou a carreira para se proteger do aniquilamento. Numa cena simbólica, ele queima uma claquete como lenha para cozinhar.

Uma mulher mostra como recicla um balde de água para, sucessivamente, beber, dar banho na filha e lavar a louça, e finalmente usar a água suja para regar as plantas e limpar o vaso sanitário. A busca por comida e água em meio ao caos é assunto e experiência frequentes entre os personagens. Assim como a perda de suas casas e entes queridos. Um segmento reconstitui a busca de um homem pelo irmão soterrado em escombros. Outro conta como sobreviveu a três bombardeios em 24 horas enquanto via morrerem, um a um, os membros de sua família. Sobreviver, em Gaza, virou uma surpresa.

Os relatos são devastadores, inclusive de crianças que convivem com o medo e a morte diariamente. A noite é apavorante para todos, seja nas casas das cidades ou nas tendas dos imensos campos de refugiados. É quando os bombardeios de Israel se intensificam. Um homem conta como recorreu a um saco de cadáver para se proteger do frio durante a noite numa tenda.

Nesse panorama extremamente triste e ao mesmo tempo revoltante, a arte também floresce como matéria de criação e destruição. Uma jovem artista plástica visita seu ateliê arruinado por bombas. Outra moça lamenta os livros queridos que teve de deixar para trás quando precisou abandonar sua casa com pouco mais que a roupa do corpo. Uma das diretoras recusa-se a filmar o horror e sai em busca de música e dança. Numa escolinha de animação, crianças reproduzem o hábito das mães de escrever o nome nos corpos dos filhos para eventual identificação se forem dilacerados pelas bombas.

O primeiro segmento é emblemático do que Histórias do Marco Zero pretende. Em Selfie, a diretora Reema Mahmoud, que perdeu toda a família nos ataques de 2014 e desde então ajuda mulheres refugiadas, escreve uma carta ao “amigo desconhecido”, que é jogada numa garrafa ao mar. Esse é o sentido da iniciativa do organizador do filme, o cineasta palestino Rashid Masharawi. Ele criou um fundo para financiar a expressão dos cineastas de Gaza. O Masharawi Fund aceita doações neste link.

Quem se sensibilizou de saída foi o documentarista e ativista Michael Moore (Tiros em Columbine, Fahrenheit 11 de Setembro), que aderiu como produtor executivo para fazer o filme repercutir e chegar ao público nos EUA. Era preciso mostrar quem eles estavam ajudando a matar. Reproduzo aqui algumas palavras eloquentes de Moore:

“Eles não são o Hamas. Eles não são estupradores. Eles não estão à espreita para assassinar israelenses. Eles não são uma ameaça a nenhum ser humano ou à Democracia, como certos propagandistas esperam que você seja submetido a uma lavagem cerebral para acreditar. Eles são taxistas e mães, crianças pequenas e professoras, comediantes e artistas — encontrando maneiras de sobreviver . De alimentar suas famílias. De dar banho em seus filhos. De manter um senso de si mesmas e de normalidade. De trazer alegria para sua comunidade. De se manterem aquecidas à noite. De manter a esperança viva.”

Como todo filme em episódios, Histórias do Marco Zero é irregular. Muitos são admiráveis pelas condições em que foram feitos. Alguns são ingênuos, outros meio toscos na realização. Todos, porém, têm um grande apelo de urgência e dramaticidade. Afinal, não é filme para ser apreciado por critérios estéticos ou técnicos. Mesmo assim, é milagroso que esses/essas 22 cineastas ainda consigam transformar a dor e a esperança em matéria artística de primeira necessidade.

>> Sessão única no Rio: terça, 9/4, às 16h30 no Estação Net Botafogo.

2 comentários sobre “É Tudo Verdade: Histórias do Marco Zero

  1. Carlinhos, onde ou quando poderei ver esse doc? Me interessa muito. Conheci de perto a nakba dos anos 70. Estive em Jerusalém a trabalho pelo JB e vi as famílias sendo expulsas de suas casas, de suas terras, de seus vinhedos milenares na hoje Cisjordânia ocupada ilegalmente. Será que consegue furar o bloqueio dos exibidores nos cinemas? Ou sensibilizar alguma plataforma. Bj.

    L éa Maria Aarão Reis

    Jornalista

    leareismaria@gmail.com leareismaria@gmail.com Rio de Janeiro/Brasil

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