É Tudo Verdade: Rua do Pescador, nº 6

Apocalipse das águas

por Paulo Lima

As enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul em 2024 recebem no documentário Rua do Pescador, número 6 um registro imersivo que coloca o espectador diretamente no olho do furacão.

Durante os primeiros minutos somos envolvidos por imagens dramáticas de resgates de animais e moradores, com uma intensidade que a avalanche de informações fornecidas pela cobertura da imprensa não foi capaz de proporcionar. Se imagens valem por mil palavras, ali elas de fato se impõem.

Bárbara Paz, a diretora do documentário, operou numa chave unicamente monocromática, opção que intensifica o efeito dramático das imagens. A banda sonora, uma mescla de efeitos musicais e som direto com o rimbombar dos trovões, a fúria dos ventos e das águas, contribui para acentuar o cenário de apocalipse. É estarrecedor.

“Nunca é de novo, é sempre novo”, saúda a frase de Heráclito nos créditos iniciais. Drama igual nunca se viu na história gaúcha, nem mesmo em 1941, data da primeira grande enchente no estado.

Em meio à dimensão desmesurada do alcance das águas – 95% das cidades do Rio Grande do Sul foram atingidas -, o documentário faz um recorte e se detém numa comunidade de pescadores da Ilha da Pintada, nas cercanias de Porto Alegre. A estrutura é dividida em dois atos: o primeiro mostra as ações de resgate, e o segundo se demora no day after, quando os moradores procuram retomar a vida entre as ruínas.

Ali vive um estrato populacional duplamente vulnerável: às intempéries climáticas e à fragilidade social. Ao dependerem diretamente das águas como meio de sobrevivência – as mesmas águas que suprem são as que agora destroem -, os moradores, muitos em idade avançada, testemunham como ninguém o impacto da destruição. Homens e mulheres discutem e se dividem entre culpabilizar o descaso da municipalidade e atribuir o infortúnio a uma ação divina. ”Não é coisa da natureza, é coisa do homem”, “É a natureza dando a resposta do que o homem está fazendo”, dizem. Buscam palavras para descrever a paisagem desolada que os rodeia. Ora é um “tsunami”, ora um “cenário de guerra”.

Nos pequenos detalhes se mostra a determinação dos moradores em ficar e resistir. Um homem faz um automóvel em condições aparentemente irrecuperáveis voltar a funcionar. “Vai ter que descer um cometa pra nos tirar daqui, no mais a gente suporta”, outro finca o pé. Alguns desses moradores mais antigos contam com o testemunho dos pais, que eram crianças nas enchentes de 1941. São sobreviventes de uma condição de vida que não mudou, mesmo tendo transcorrido décadas.

A solidariedade impera não somente em relação aos familiares, amigos e vizinhos, mas também se estende aos animais. O que restou se espalha em fragmentos de documentos, como uma carteira de trabalho, pedaços irrecuperáveis de toda uma vida. De um morador vem talvez a frase mais lapidar de todo o documentário: “Tu não tá limpando a casa, tu tá revolvendo a memória”.

É a memória de uma tragédia anunciada, daquilo que poderia ter sido evitado, que o documentário de Bárbara Paz nos entrega com muita sensibilidade.

Paulo Lima

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