Autoetnografia à beira do Tapajós
Em 2022, quando foi filmado Mundurukuyü, a Floresta das Mulheres-peixe, a aldeia Sawre Muybu do povo Munduruku, no Pará, ainda não tinha sua terra demarcada, o que só viria a acontecer em setembro de 2024, já no governo Lula. Eles então lutavam pela demarcação e contra as invasões de plantadores de soja, garimpeiros e outros empreendimentos dos pariwat (não indígenas) danosos à floresta.
Mas essa é apenas uma parte do que vemos no filme do Coletivo Audiovisual Daje Kapap Eypi.
Já na primeira sequência, assistimos às realizadoras Aldira Akay Munduruku, Beka Saw Munduruku e Rilcélia Akay Munduruku traçarem planos do que pretendiam com esse longa-metragem: falar sobre a história e a cultura do seu povo. É a senha para uma espécie de autoetnografia, em boa parte baseada nos relatos on camera do cacique Juarez Saw Munduruku. É ele quem desfia as histórias míticas da criação do Rio Tapajós a partir do suco da semente do tucumã, dos homens que em certa época se transformaram em porcos e do garoto devasso que virou anta e comeu todas as mulheres da aldeia. Quando os homens ciumentos mataram a anta, elas por vingança se atiraram no rio e se transformaram em peixes.
Em paralelo a essas narrações mágicas, o trio de cineastas demonstra diversas práticas e costumes dos mundurukus: os cuidados do pajé com uma mulher grávida, o exame da “claridade” no peito de um garoto destinado a ser pajé, a colheita de plantas medicinais, a cerimônia dos primeiros formandos do Ensino Médio na região do Médio Tapajós e a animada pesca ritual chamado Tinguejada.
Mundurukuyü é um simples ato de afirmação de uma cultura que teima em resistir ante a devastação da Amazônia. O filme foi produzido e corroteirizado por Estêvão Ciavatta, cineasta pariwat com boa experiência na região. Bons trunfos da produção são a fotografia primorosa de Carlos Araió Nascimento e as animações de Nelson Porto, essenciais para o apelo visual do documentário.
A lamentar apenas que o aspecto de filme-processo, insinuado no início, tenha ficado à sombra da narrativa mais objetiva. Ou será que estamos viciados na expectativa de que todo filme indígena seja sobre como fazer um filme indígena?

