Herzog, participante involuntário
Sobre um Herói (About a Hero) pretende – mais pretende que consegue, digamos logo de saída – avançar em duas questões fundamentais da contemporaneidade: a hierarquia entre homens e máquinas em um mundo crescentemente tecnológico e as fronteiras entre verdade (documentário) e invenção (ficção) em uma realidade e um cinema cada vez mais híbridos. O novo ingrediente é a inteligência artificial, que co-assina o filme do polonês Piotr Winiewicz.
Um modelo de IA foi criado a partir da obra de Werner Herzog e denominado Kaspar (referência clara à obra-prima O Enigma de Kaspar Hauser sobre um personagem que não tem memórias). Kaspar teria criado o roteiro do filme, o que já coloca o espectador em estado de suspeição. Um letreiro de apresentação convida o público a não acreditar em tudo o que ouvirá e verá. A voz de Herzog, por exemplo, foi criada artificialmente, assim como trechos de fala de outros entrevistados.
Assim, documentário, mockumentary, deepfake e ficção pura e simples se mesclam na investigação sobre a morte misteriosa de um operário na fictícia cidade alemã de Getunkirchenburger. Ele trabalhava na criação de uma certa “máquina infinita” que geraria sua própria energia. A partir daí, é lançada uma labiríntica discussão sobre a perspectiva de as máquinas ficarem mais inteligentes que os homens e ganharem a vida eterna.
Personagens ficcionais como a viúva do operário (Imme Beccard), uma repórter (Vicky Krieps), um padre, um vigia noturno e os donos da fábrica dão depoimentos contrastantes sobre o incidente. Em outra chave, pensadores e poetas reais discorrem sobre os limiares emocionais fluidos entre homem e máquina, além de outras elucubrações nem sempre muito frescas ou plausíveis.
A proposta de fazer um filme à la Werner Herzog ganha sentido na mobilização de um tema “da hora”, na aparição de figuras excêntricas, no uso de algumas imagens hipnóticas e algumas bizarrices como uma entrevista respondida com pantomima e ocasionais signos de filme de terror. Já uma cafeteira que liga e desliga por si e uma torradeira usada como parceira sexual são itens que dificilmente veríamos num filme de Herzog (Kleber Mendonça Filho, sim, já fez isso com uma máquina de lavar no curta Eletrodoméstica).
O próprio Herzog (sua versão artificial, é claro) se diz um “participante involuntário” de About a Hero. Ele é questionado sobre o projeto de Winiewicz e esbraveja: “isso é uma tradução cada vez mais distorcida da minha identidade”. O filme nos coloca num terreno movediço, embora se esgote num misto de especulação filosófica e divertimento esdrúxulo. Serve, talvez, para confirmar o desafio um dia colocado por Herzog: “Um computador não vai fazer um filme tão bom quanto os meus em 4.500 anos”.


O Herzog tem longa vinculação com mockumentary. Lembra do Incidente no Lago Ness? Era muito ruim, aliás.
Sim, ele adora uma provocação com os documentários. Mas nesse caso não é ele que está fazendo, né?