HOMEM COM H
Uma infância no interior do hoje Mato Grosso do Sul, um pai militar, homofóbico e violento, e uma passagem pela Aeronáutica não conseguiram domesticar Ney de Souza Pereira. Pelo contrário, serviram de combustível para o libertarismo e a irreverência que iriam marcar a vida adulta e a carreira de Ney Matogrosso. Esse enfrentamento é o mote principal da cinebiografia Homem com H.
Daí que as figuras de autoridade, como o pai, o empresário, os censores e até mesmo jornalistas tenham grande importância na construção do filme. Enquanto estes defendem a ordem, o pudor e a normatividade, Ney vai se deixar levar pelo instinto e por sua natureza animal. O contato com a selva e o figurino de oncinha de Elvira Pagã despontam como signos deflagradores da persona assumida pelo artista em sua fase inicial. Um ser híbrido de gente e bicho, homem e mulher, cantor e ator.
A estrutura cronológica e linear não chega a tornar o filme careta, uma vez que os saltos temporais se dão em módulos, sem estabelecer relações de causa e efeito. Assistimos aos primórdios do artesão de adereços, à descoberta de sua voz de castrati num coral, à gênese dos Secos & Molhados, à dissolução do grupo e ao embarque na carreira solo, às relações amorosas com Cazuza, Marco de Maria e muitos etceteras, às perdas para a Aids.
Com o tempo, fica claro como Ney pôs em prática sua liberdade de escolha, seja na forma de se apresentar no palco, seja na maneira como compartilha seu amor sem nenhuma restrição. Os dois polos de liberdade – vida e arte – estão muito bem articulados num roteiro primoroso, de autoria do próprio diretor Esmir Filho. Entre muitas qualidades dessa escrita, destaco o modo como Ney vai aos poucos se despindo de seus adereços animais para chegar à figura quase clássica da maturidade.
A ênfase no sexo, que pode parecer às vezes um tanto exagerada, procura corporificar na prática o que há de erótico na postura do artista. A sexualidade transbordante está impregnada nos corpos, que Esmir filma com o jeito pródigo e sensual que já caracterizava seus filmes anteriores. Ele é um dos cineastas brasileiros mais habilidosos na criação de atmosferas sensoriais que traduzem o desejo e a volúpia.
Homem com H é um filme de escolhas certas, que começam na escalação do elenco, tendo à frente um Jesuíta Barbosa simplesmente estupendo. Mais que uma imitação, ele faz uma encarnação de Ney Matogrosso, condensando em meneios de corpo e sutilezas de olhar o que se conhece ou se adivinha de Ney. É uma das grandes performances do cinema no ano, comparável à de Timothy Chalamet como Bob Dylan.
O acerto nos tempos dramáticos, na belíssima fotografia de Azul Serra, na montagem de Germano de Oliveira, na qualidade do som e na atuação de todo o elenco faz desse filme um marco no gênero entre nós. Pode ser complementado pelo igualmente fascinante documentário Olho Nu, de Joel Pizzini. Ali, Ney dizia que a máscara o fez descobrir-se na falta de identidade. Era uma frase bonita e crucial para se entender um artista que se expõe na mesma medida em que se esconde. Em Homem com H, enfim, reencarnado na dramatização, ele se mostra de corpo inteiro.
>> Homem com H está nos cinemas.



Excelente crítica, concordo em gênero, número e grau.
Obrigado grande Carlinhos!!! Vamos assistir amanhã, banhados pelo elixir que é a sua análise!
Depois me diga o que achou, querido Guto.