Daoud e Iracema em busca de outros nortes

APENAS ALGUNS DIAS e uma nota sobre o relançamento de IRACEMA, UMA TRANSA AMAZÔNICA

Baseado num romance de Marc Salbert, Apenas Alguns Dias (Quelques Jours pas Plus) parece usar uma pequena história ficcional para dar um panorama íntimo da abnegada assistência de voluntários parisienses a refugiados que buscam asilo ou estão de passagem. É o caso do humilde afegão Daoud (Amrullah Safi), que há quase quatro meses se desloca por dez países a fim de chegar à Inglaterra, onde já se encontra parte da sua família. Em Paris, é ajudado por uma associação de voluntários que distribui comida na rua e procura pessoas dispostas a alojá-los por “apenas alguns dias”. Por uma circunstância fortuita, ele será abrigado por Arthur (Benjamin Biolay), jornalista enviado para fazer uma reportagem sobre os refugiados.

Arthur na verdade é um crítico de música desastrado que seu editor pune com a transferência para a editoria geral. A evolução do argumento é bastante previsível na medida em que os laços entre Arthur e Daoud se  formam e arrastam a simpatia de uma advogada voluntária por quem o jornalista se enamora.

O filme é um misto de buddy movie, esboço de comédia romântica e painel social. Desce a detalhes no funcionamento da associação, cujo trabalho numa praça é alvo de repressão pela polícia municipal. A imagem heroica  dos voluntários é construída em paralelo à hesitação do jornalista em se juntar a eles.

A diretora Julie Navarro trata seus personagens com carinho, ainda que não evite clichês do gênero drama social. A expressão do ator Amrullah Safi é um trunfo de legitimidade na encenação. De resto, cabe observar o  chamego do cinema francês com o velho hit Paroles, Paroles, que marca presença em momentos de júbilo neste filme e também em Entre Nós, o Amor, lançado na semana passada.

>> Apenas Alguns Dias está nos cinemas.

A volta de Iracema

O superclássico Iracema, uma Transa Amazônicade Jorge Bodanzky e Orlando Senna, está de volta aos cinemas em cópias restauradas em 4K.

Um novo caminho para o cinema brasileiro foi literalmente aberto por esse filme em 1974. Admirador de Jean Rouch e John Cassavetes, Bodanzky e Senna criaram uma forma inédita de mestiçagem entre a invenção ficcional e o compromisso documental. Transformaram diálogos em entrevistas, gente de verdade em personagens, cenários reais em sets de filmagem não-invasiva, e colocaram as convenções do road movie a serviço da denúncia social. A novidade, exibida clandestinamente em tempos de censura, exerceu forte influência em muitos cineastas que viam exauridas as formas de representação eleitas pelo Cinema Novo para dar conta da realidade brasileira. Passou-se a falar no gênero “semidocumentário”, denotando uma interação de linguagens que nunca mais deixaria de inspirar parcela significativa e avançada do nosso melhor cinema.

Sobre a realização e a circulação do filme, destaco duas falas de Bodanzky, constantes do livro que fizemos juntos, Jorge Bodanzky, o Homem com a Câmera. A íntegra do livro pode ser acessada neste link.

“Leon Hirszman foi um dos maiores divulgadores do filme, assim como Décio Pignatari, que o analisava regularmente com seus alunos na PUC. Na Alemanha, no Brasil e em vários países, Iracema adquiriu um caráter exemplar sobre a situação da Amazônia. As imagens das queimadas – entre elas um travelling de quase um minuto filmado da porta da kombi – foram as primeiras do gênero a serem divulgadas e causaram estupor em televisões estrangeiras. Por um bom tempo, o filme foi um hit das reuniões dos comitês do Movimento de Defesa da Amazônia. Nessa época, não se concebia uma exibição de Iracema sem um debate subseqüente. As discussões eram sempre muito interessantes e atraíam as melhores cabeças do país.”

“Dou mais valor à imagem interessante que à imagem bonita. Já em Iracema, vi como é difícil resistir à tentação da beleza quando se está filmando num lugar bonito ou exótico como a Amazônia. Mas eu simplesmente esqueço a estética do ambiente e procuro focar na clareza da idéia que quero passar. O foco na estética engessa a imagem e pode distrair a atenção do espectador daquilo que se quer priorizar. Ademais, se há beleza, ela vai passar mesmo que não haja a intenção estetizante.”

 

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