Sylvio Back responde à crítica de “O Contestado”

Carlos Alberto Mattos, na esteira de seus comentários ao meu “O Contestado – Restos Mortais”, sobre os quais não pretendo nem ouso fazer qualquer objeção, pois o papel do crítico é criticar e o do cineasta fazer filmes, tomo a liberdade de lhe enviar estas reflexões:

O cinema é uma linguagem, e o filme, uma tela de mil olhos. E nelas cabem todas as vertentes (e interpretações), mesmo uma inaudita como o discurso mediúnico, ainda que pareça algo fake, encenado ou manipulado. Tudo para dotar a narrativa de um tônus ficcional, estrangeiro ao documentário tal como é conhecido e reconhecido, incorporando verdades-e-mentiras num mesmo canal audiovisual que deixe o espectador desarvorado, órfão de qualquer segurança ética e estética. É o que venho intitulando de antidoc, um cinema que se conflite com o consagrado e o institucionalizado, correndo o risco de não parecer o que é, e de ser o avesso do que seria um filme bem-comportado e palatável a todos os gostos e mídias. Um cinema na contramão dos filmes clientelistas, hoje tão em voga, na feliz definição do cineasta e teórico francês, Marc Ferro.

Assim, “O Contestado – Restos Mortais” é um antidoc por excelência, mais radical do que outros docudramas meus que você conhece e admira, alvos de contundentes polêmicas (eu acrescentaria, incompreensões), como “Yndio do Brasil” e “Rádio Auriverde”. A inserção do relato de médiuns no corpo do filme, e que perturba e conturba a narrativa, serve justamente para borrar essas fronteiras draconianas entre doc e fic. Afinal, qual a diferença entre ambos: uma vez o real filmado torna-se depositário infiel do pretérito, portanto, uma ficção sempre mediatizada pela imponderabilidade da memória. Cada um se apropria e introjeta seu complexo sentido como achar melhor, acreditando, endossando, edulcorando, contraditando ou desconfiando. Eu faço um cinema que desconfia! Aliás, Mattos, esse achado a propósito da minha obra, é seu!

O transe, como uma insondável camada do inconsciente coletivo e da história do homem, por isso mesmo matéria prima de altas indagações no campo da física quântica (a matéria perece, mas a consciência jamais desapareceria!), para mim, é a mais pura e límpida poesia. Não sou espírita, nem cientista, sou cineasta e poeta. Nada no transe é real ali, tudo imaginação e imaginário, um salto no escuro na invisibilidade de fatos e feitos primevos, eu diria, como se prestidigitação mágica fora rumo ao mais denso dos mistérios da alma humana! Em “O Contestado – Restos Mortais” a aposta é nessa direção, imiscuir-se, resgatando através da palavra, pela sua verbalização cifrada e entrecortada pela fluidez do tempo e do espaço, no que foi esquecido e no que é preciso lembrar.

Lembremo-nos de que o passado é um outro país, lá as coisas são diferentes (Joseph Losey). Assim, toda vez que voltamos a ele houve ou ocorreu alguma mudança, nele e em nós! Nunca mais o encontramos do mesmo jeito, na dimensão e contornos quando o freqüentamos pela última vez. Sua capacidade de nos surpreender é absurda. O testemunho dos médiuns seria a indefectível correia sensorial a tensionar essa mobilidade e incompletude do passado e a nossa relação memorial e moral com ele.

Depois, a ideia nunca foi fazer um doc lato sensu (não sou um documentarista lato senso) sobre a Guerra do Contestado, daí os “clipes” com imagens de arquivo (fotos & filmes), por exemplo, raras vezes surgirem para sublinhar depoimentos e entrevistas, o que seria empobrecê-las, desacreditar nas minhas próprias imagens e na capacidade de “viajar” do espectador. Ao contrário, por serem todas flagrantes oficiais, encomendados, “chapa branca”, funcionam como uma espécie de contraponto heróico do que sobrevive na cabeça das pessoas um século depois do conflito. Essa autonomia do acervo, premeditadamente procurada, e colocada sob suspeita pelas recordações afetivas e pela história, é uma das claves que emprestam a amperagem polêmica do filme e que melhor lhe definem o torque revisionista do tema face às minhas convicções como homem e artista.

Abraços, Back

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